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Temporada de furacões piora pandemia nos EUA e deve afetar a todos nós

Daniel Schultz

27/08/2020 04h00

Imagem de satélite mostra tempestade Laura (abaixo) próxima a Cuba e furacão Marco (acima) na costa dos EUA (RAMMB/NOAA/NESDIS/AFP)

Por Cristina Schultz*

Em meio ao justificado pânico que se instaurou desde que o coronavírus tomou conta do mundo, é fácil perder de vista outros problemas que podem gerar prejuízos econômicos e sociais. Eventos climáticos extremos são alguns desses problemas e têm potencial para piorar ainda mais a pandemia.

Por evento extremo leia-se furacões, secas, enchentes, queimadas, ondas de calor e por aí vai. A previsão para a temporada de furacões no oceano Atlântico, que atinge a América Central e sul da América do Norte, é a mais ativa já avaliada pela Administração da Atmosfera de dos Oceanos dos EUA (NOAA).

Historicamente, até o início de agosto ocorrem em média duas tempestades tropicais (que podem se intensificar e gerar furacões), comparado às nove observadas até então esse ano.

Apesar da temporada de furacões começar apenas em junho, é o sexto ano seguido em que tempestades tropicais ocorrem antes do início da temporada. A estimativa do prejuízo econômico causado por tempestades e furacões até agora em 2020 é de  US$ 5,96 bilhões.

Quando se sai de casa, é confortante pensar que as pessoas ao seu redor passaram a noite seguras e isoladas em suas casas, que elas lavaram as mãos frequentemente. Seria bom ter certeza de que se elas se sentirem mal não vão hesitar em procurar atendimento de saúde e não vão se sentir obrigadas a trabalhar mesmo doentes, aumentando o risco de contágio.

Esse cenário já é complicado no Brasil por conta da desigualdade econômica que força muita gente a se arriscar e a viver sem os recursos necessários para fazer um isolamento social seguro. É ainda pior em áreas afetadas por furacões, onde enchentes e fortes ventos interrompem serviços essenciais como água e energia em cidades inteiras, desalojam milhares de pessoas e as levam a passarem dias em acampamentos improvisados lotados. Imagine a dificuldade de evacuar com segurança, com apenas alguns dias de sobreaviso, um hospital onde muita gente permanece sendo tratada durante a pandemia. Se parece um cenário absurdo no Brasil, pode ser a realidade em diversas comunidades no Caribe e nos EUA durante boa parte do ano.

Apesar de o tempo só poder ser previsto com alguma exatidão com poucos dias de antecedência, fazendo com que seja difícil antecipar um evento extremo, é possível através de modelos climáticos saber se a incidência de um determinado evento climático vai aumentar ou diminuir numa determinada região. A diferença entre a projeção de tempo (que dura alguns dias) e clima (que dura décadas) já foi abordada aqui.

Quando ocorre um evento extremo, não é responsável correr e apontar o dedo dizendo que com certeza esse exemplo foi culpa do aquecimento global. Eventos extremos sempre aconteceram e por vezes deixaram marcas profundas nas sociedades que sofreram com eles.

O que muda, atualmente, é a chance de um evento desse acontecer a cada momento. O furacão Harvey, que em 2017 inundou Houston (quarta maior cidade dos EUA) e causou bilhões de dólares de prejuízo, por exemplo, foi um evento fora do comum. Ainda que seja possível que esse determinado furacão ocorresse independente do aquecimento global, uma análise estatística da ocorrência e intensidade de furacões, associada a uma análise dos resultados de modelos climáticos, indica que se o furacão Harvey não foi 100% causado pelo aquecimento global, o estrago foi pelo menos amplificado.

Um estudo baseado em dados de chuva concluiu que a chance de um evento como o furacão Harvey ocorrer hoje em dia é três vezes maior do que há um século atrás, e que aquecimento global tornou as chuvas 15% mais intensas na região de Houston.

Estudos baseados em modelos estimam que até 2100 a chance de um evento desses ocorrer aumenta 18 vezes comparado à chance durante o período entre 1981-2000. Outros estudos também indicam que a urbanização (leia-se a quantidade de concreto em Houston) não só atrapalhou o escorrimento da água, levando a enchentes, como aumentou ainda mais a quantidade de chuva durante o furacão.

Nos últimos anos aumentou a incidência de furacões e também de queimadas no oeste dos EUA e na Austrália, de ondas de calor na Europa e na Índia, de enchentes e secas que atingem diversas partes do mundo.

O foco em como lidar com desastres ambientais atualmente tem sido em maneiras eficientes de prestar socorro para populações afetadas, mas no caso de uma tragédia anunciada nunca é cedo para começar a investir em prevenção e evitar que esses eventos climáticos (que são inevitáveis, infelizmente) virem também crises sanitárias. Além de eventos extremos que dificultam a prevenção de diversas doenças (não só covid-19), o aquecimento global também deve expandir áreas habitadas por diversos vetores de doenças, como mosquitos e carrapatos.

Numa sociedade globalizada, os problemas dos outros são nossos também, e não adianta pensar que eles só ocorrem em outros lugares. Em áreas duramente afetadas a população vai tender a se mudar, aumentando a migração ao redor do planeta e redistribuindo o uso de recursos naturais.

Uma coisa ficou bem clara durante a pandemia em que nos encontramos: é bom para todo mundo que todos tenham acesso a serviços de saúde, moradia e água tratada. Além de fazer a nossa parte tomando cuidado para evitar a contaminação por covid, é importante pensar adiante, em ideias e políticas públicas que levem em consideração a nova realidade do planeta.

*Cristina Schultz é oceanógrafa formada pela USP, com mestrado em meteorologia pelo Inpe e doutorado em oceanografia química pelo Woods Hole Oceanographic Institution (WHOI) e o Massachusetts Institute of Technology (MIT). Atualmente faz pós-doutorado na Universidade da Virgínia (UVA). Sua pesquisa é focada em combinar o uso de dados coletados em cruzeiros oceanográficos e modelos para entender as consequências das mudanças climáticas observadas durante as últimas décadas na química do oceano e no ecossistema marinho em áreas polares (mais especificamente na Península Antártica, no Golfo do Alaska e no Mar de Chukchi)

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Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

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