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Devemos nos preocupar com a pressa em encontrar uma vacina contra covid-19?

Daniel Schultz

03/08/2020 04h00

jcomp/ Freepik

A demora no desenvolvimento da vacina vai fazer a diferença entre pensarmos na covid-19 como uma fase passageira ou como a nova realidade da humanidade. Para isso, cientistas ao redor do mundo estão trabalhando para criar em um ano e meio algo que geralmente leva mais de uma década. Até agora há muitas razões para um otimismo cauteloso, com várias vacinas mostrando potencial. Porém, é preciso ter paciência, pois é preciso ter o máximo de certeza possível antes de injetar a humanidade toda com um remédio feito às pressas.

Como já é bem sabido, a volta à "vida normal" de antigamente depende de uma vacina para a covid-19. Até conseguirmos vacinar a maior parte da humanidade, teremos que conviver com as medidas de distanciamento social, sob o risco de perder o controle da doença e dizimar boa parte da população.

Menos de 6% das vacinas desenvolvidas acabam sendo aprovadas, pois não apresentam benefícios ou porque causam reações adversas. Ainda não existe nenhuma vacina para um coronavírus, e nosso recorde de tempo para o desenvolvimento de uma vacina totalmente nova é de quatro anos.

Para tentar obliterar esse recorde, foi montado um esforço descomunal. Já no começo da epidemia especialistas apontavam que para se conseguir "velocidade, larga escala e acesso" eram necessários "muitos chutes a gol e muitos gols saindo desses chutes" (Anthony Fauci, diretor do NIAID – Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas).

O governo americano lançou o programa "Warp Speed", uma parceria pública-privada que destinou US$ 10 bilhões para o desenvolvimento de vacinas. Oito empresas já foram beneficiadas. Bill Gates anunciou que vai começar a construir sete fábricas para vacinas diferentes. No final das contas, é esperado que das dezenas de vacinas sendo pesquisadas ao mesmo tempo sobrem no máximo duas ou três.

Como produzir vacinas 10 vezes mais rápido

A produção de vacinas começa com a pesquisa acadêmica. Quando os testes de laboratório apontam para uma estratégia promissora, começa o trabalho pré-clínico, que almeja produzir vacinas para o começo dos testes.

Os testes clínicos vão aumentando de tamanho, com algumas dezenas de voluntários na primeira fase, depois centenas na segunda fase e milhares na terceira.

Depois de cada uma das fases, os dados são analisados, revisados e aprovados antes do início da fase seguinte. Quando a eficiência e segurança da vacina é estabelecida, começa a construção de fábricas com capacidade para produzir milhões de doses. Cada vacina é produzida por um método diferente.

Depois vem o período de manufatura. Só depois disso, já com grandes quantidades da vacina produzida, vem a aprovação final pelo governo federal, que passa da ciência para as questões legais de responsabilidade.

Por fim, vem o esforço final de distribuir a vacina e convencer a população a tomá-la.

Para conseguir produzir a vacina em tempo recorde, é preciso tomar atalhos e realizar várias dessas etapas ao mesmo tempo.

Começamos por utilizar o que já sabemos sobre coronavírus. O SARS-CoV-2 é 80% idêntico ao SARS de 2002, e já existiam esforços pela vacina do SARS antes da pandemia de covid.

As fábricas estão sendo construídas antes mesmo dos testes serem concluídos, e fábricas de outras vacinas estão sendo remodeladas para o covid.

Os testes clínicos estão estão sendo apressados, com novas fases começando antes da conclusão das fases anteriores. Esses testes estão sendo conduzidos em áreas com grande incidência da doença, como o Brasil e os Estados Unidos.

Toda essa pressa vem dando frutos, e já temos 6 vacinas nas fases finais de testes e uma vacina chinesa já aprovada para uso limitado.

Apostando em vários tipos de vacina

Vacinas funcionam induzindo uma resposta imunológica a algum antígeno, um pedaço do vírus que nosso sistema imunológico reconheça como invasivo. Nossos linfócitos então produzem anticorpos contra esse antígeno, que acabam nos protegendo também contra o vírus. Nosso sistema imunológico possui células de memória que, quando ativadas, "lembram" do antígeno, induzindo respostas imunológicas rápidas no caso de infecções futuras. Assim, o primeiro passo pela vacina é encontrar um antígeno conveniente, que resulte numa proteção duradoura.

No caso da covid, estudos com o SARS sugerem que a proteína spike que reveste o vírus é outro excelente candidato, usado pela maioria das vacinas sendo testadas. O segundo passo é levar antígenos o suficiente à corrente sanguínea para gerar uma resposta imunológica. É aí que os métodos divergem.

Uma parceria entre a Universidade de Oxford e a farmacêutica AstraZeneca desenvolveu uma vacina que usa um adenovírus inofensivo de chimpanzés levando material genético com instruções para a produção da proteína spike. Assim, o antígeno é produzido pelas nossas próprias células.

Esse método nunca produziu uma vacina aprovada, mas a vacina de Oxford vem liderando a corrida, com resultados surpreendentes. Os filhos trigêmeos da criadora da vacina Sarah Gilbert, todos estudantes de bioquímica, participaram dos testes iniciais.

A empresa de biotecnologia Moderna, que ainda não tem uma vacina aprovada no currículo, vem desenvolvendo em parceria com o NIH uma vacina que leva o material genético codificando a proteína spike às nossas células através de nanopartículas lipídicas sintéticas. Esse método também nunca produziu vacinas aprovadas, mas a Moderna gerou muito frisson ao iniciar os testes clínicos apenas 66 dias após o sequenciamento do SARS-CoV-2.

A Novavax, outra empresa de biotecnologia que nunca trouxe uma vacina ao mercado, recebeu US$ 1,6 bilhão do programa Warp Speed para desenvolver uma vacina que usa nanopartículas para levar a própria proteína spike, juntamente com adjuvantes para estimular a resposta imunológica.

Várias empreitadas chinesas também estão na briga, a maioria usando métodos mais tradicionais que utilizam versões inativadas do vírus como antígenos. Os testes clínicos na China também vão a todo vapor, testando os limites da ética, mas com resultados animadores. Outra empresa chinesa, a CanSino, também publicou bons resultados com uma vacina de adenovírus.

É preciso agir com  cautela

Com uma vacina aprovada, poderemos planejar nossa volta à normalidade. Priorizaríamos inicialmente a vacinação de profissionais da saúde, idosos e pessoas em grupos de risco, e, conforme a produção da vacina avançasse, vacinaríamos o restante da população.

Porém, há muito o que se temer quanto às conseqüências de se apressar demais o processo. Vacinas ainda não exaustivamente testadas, assim como qualquer droga, podem apresentar problemas. Caso esses problemas surjam já durante a vacinação em massa, podem por tudo a perder, pois já existem movimentos organizados antivacina esperando pelo menor deslize.

Nos EUA já se teme que o governo Trump tente forçar a liberação de alguma vacina antes de disputar a reeleição em novembro, um prazo impossível de ser cumprido de maneira responsável.

Mesmo com todos os avanços, é importante não contar com a vacina antes de ela existir. Nossos planos não podem depender disso, e todo o nosso fortíssimo desejo de voltar ao normal infelizmente não vai ajudar a vacina a funcionar.

Como já aprendemos com a cloroquina, é importante não botar o carro na frente dos bois e esperar pelas comprovações.

Ano passado foi aprovada a primeira vacina contra o ebola, 43 anos depois de o vírus ser descoberto. O HIV continua sem vacina, apesar de todo o investimento. No caso da covid, temos boas razões para ter esperança em uma vacina para o meio do ano que vem, dificilmente antes disso. Mas não se surpreenda se demorar alguns anos, e ainda assim terá sido um grande feito.

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Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

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