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Ficamos viciados em evolução de epidemias, mas o que aprenderemos com isso?

Daniel Schultz

26/04/2020 04h00

Reprodução

A pandemia veio e nos pegou despreparados. Os casos começaram a crescer exponencialmente e as previsões eram devastadoras. Nos restou entrar em quarentena, mais para ganharmos tempo. Agora a curva finalmente começa a "achatar" e entendemos a situação um pouco melhor. Aprendemos muito sobre a doença, construímos novos hospitais, aumentamos os leitos de UTI, disponibilizamos mais ventiladores pulmonares e equipamentos de proteção. A população aprendeu as medidas de distanciamento social e entendeu a gravidade da situação.

Porém, ainda não estamos tão perto de remédios e vacinas, e manter a quarentena por muito mais tempo começa a se tornar insustentável. Estamos preparados para sair dela? Como planejar a reabertura? O que vai acontecer? Mais que nunca precisamos de modelos epidemiológicos confiáveis para guiar as medidas de saúde pública, mas também precisamos entender o que realmente podemos aprender com eles.

Modelos epidemiológicos

Em 1854 John Snow mapeou todos os casos de uma epidemia de cólera em Londres e viu que eles se concentravam ao redor de certas bombas de água. Descobriu que a doença se transmitia pela rede de água da cidade e não pelo ar, como se achava na época. Assim começou a epidemiologia, que estuda a disseminação de doenças em populações.

Nos anos 1920 Kermack e McKendrick propuseram os primeiros modelos matemáticos que previam a evolução do número de casos de uma doença se transmitindo em uma população, os chamados modelos SIR. Esses modelos levam em conta as parcelas da população de pessoas suscetíveis (S), infectadas (I) ou recuperadas (R) da doença e baseiam as previsões em alguns parâmetros típicos de cada epidemia, como as taxas de infecção e recuperação. A maioria dos modelos atuais ainda são baseados nesses mesmos princípios.

Vários conceitos importantes vêm desses modelos, como a "imunidade de rebanho" adquirida quando a maioria da população já contraiu e se recuperou da doença (ou foi vacinada). Podemos também calcular o "número básico de reprodução" da doença R0, que estima o número de novas infecções provocadas por cada paciente infectado. Se R0 for maior que 1 cada paciente transmite a doença para mais de uma pessoa, e o número de infecções aumenta com o tempo. Caso contrário, a epidemia retrocede.

Todos os modelos são errados, alguns modelos são úteis

Essa é uma máxima repetida frequentemente no ramo. Modelos nos ajudam a pensar nos possíveis cursos da epidemia e a identificar as ações mais eficazes para combatê-la, mas infelizmente não são bolas de cristais. Via de regra, as previsões são extremamente sensíveis aos parâmetros que descrevem as características da epidemia, especialmente em se tratando de crescimento exponencial. E esses parâmetros não só são dificílimos de serem estimados, mas também mudam com o tempo, conforme as condições de saúde pública vão mudando.

Talvez o caso mais emblemático seja o do estudo do Imperial College de Londres que demoveu Boris Johnson da ideia de deixar a epidemia correr solta no Reino Unido. Esse estudo previa milhões de mortes ao redor do mundo se nada fosse feito e levou o governo britânico a impor a sua quarentena. Embora o Reino Unido tenha sido atingido severamente pela epidemia (inclusive o próprio Boris Johnson), o cenário não foi tão catastrófico quanto o esperado, despertando a ira dos oponentes da quarentena. Em grande parte foi pelo sucesso da própria quarentena, mas também porque o modelo não era refinado o suficiente para acertar previsões.

Esse refinamento leva tempo e necessita de dados confiáveis. Talvez o dado mais essencial que nos falta nessa pandemia é a quantidade de pessoas recuperadas. A grande maioria dos testes são aplicados em pessoas já hospitalizadas, com sintomas fortes, e não se sabe ao certo quantos casos da doença deixam de ser diagnosticados. Sabemos inclusive que a infecção pode ser grave, reduzindo a capacidade pulmonar em mais de 50%, e mesmo assim não ser notada.

Vários estudos interessantes tentam estimar quantas pessoas já contraíram a doença, testando de modo a representar a distribuição demográfica da sociedade. A cidade de Santa Clara, na California, testou a presença de anticorpos em 3 mil voluntários escolhidos a dedo. Concluíram que por volta de 3% da população já tinha contraído a doença, um número de 50 a 85 vezes maior que os casos oficiais. Um estudo semelhante na Holanda testou milhares de amostras de doadores de sangue e também chegou à conclusão de que por volta de 3% da população já havia contraído o vírus. Em Nova York, o atual epicentro da epidemia, a Universidade de Columbia concluiu que 15% das mulheres grávidas admitidas ao seu hospital para o parto já haviam contraído o vírus. Mesmo por lá, ainda não se está perto da imunidade de rebanho.

Como sair da quarentena

Numa coisa os modelos concordam: se acabarmos de uma vez com a quarentena o número de casos volta a explodir. Se quisermos usar a quarentena para realmente acabar com a epidemia, os modelos nos ensinam que medidas ainda mais restritivas que as atuais teriam que ser mantidas por muito tempo. Não é uma alternativa viável. Também não temos tempo de esperar pela cura. A estratégia deve ser reabrir de modo a manter um número de casos baixo o suficiente para permitir o monitoramento constante.

A reabertura deve portanto ser gradual, e provavelmente cada passo vai ser acompanhado de um aumento no número de casos. E nesse processo deveremos manter o máximo possível de medidas de distanciamento social. Num primeiro momento, quando os números estiverem mais favoráveis, podemos relaxar a quarentena ao que já vem sendo feito com algum sucesso na Suécia. Trabalho de casa desde que possível, escolas abertas mas universidades ainda fechadas, aglomerações proibidas, restaurantes com capacidade reduzida e proteção à população idosa. Outra opção é a reabertura com uma semana com dias úteis reduzidos. Tudo isso com muita máscara, luva e mãos lavadas.

A reabertura também vai precisar da capacidade de testar em larga escala. Modelos da Escola de Saúde Pública de Harvard mostram que o rastreamento e monitoramento de pessoas que estiveram em contato com outras pessoas infectadas podem ajudar muito a mitigar a transmissão do vírus. Assim, quem estiver nesse grupo de risco seria isolado assim que apresentasse qualquer sintoma.

Sofisticação dos modelos podem evitar pandemias no futuro

Entre as várias lições a serem tomadas dessa pandemia está a necessidade de se estabelecer mecanismo de coleta e análise de dados sobre epidemias em nível global. Os especialistas nesse tipo de modelo geralmente estão na academia, sem relações formais com agentes do governo tomando decisões. A comunidade tem se organizado mais que nunca durante essa pandemia, mas esbarra na falta de informação de qualidade. Os cientistas da área sonham em dispor de uma base de dados com informações constantes sobre a circulação de doenças infecciosas pelo mundo para um dia poderem gerar modelos complexos capazes de fazer previsões, assim como a previsão do tempo é feita com os dados meteorológicos.

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Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

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