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Avanços na restauração do cérebro permitirão curar seu avô do Alzheimer

Daniel Schultz

03/10/2019 04h00

A restauração de funções cerebrais perdidas já não é uma realidade tão distante. Pelo menos duas pesquisas recentes descobriram formas de inibir o avanço do Alzheimer ou recuperar parte das funções do cérebro comprometidas pela doença

Intervir no cérebro humano sempre foi um assunto complicado. São centenas de trilhões de conexões entre 90 bilhões de neurônios de vários tipos, em constante reorganização, que guardam a essência do que nós somos.

Neurônios danificados em geral não se regeneram, e alterações relativamente pequenas nessa rede complexa podem deixar sequelas graves e irreversíveis, o que dificulta intervenções cirúrgicas. Além disso, o cérebro é protegido por uma barreira seletiva que o separa do sangue que corre no resto do corpo, o que dificulta o acesso de vários medicamentos.

Assim, a maioria dos tratamentos à nosso disposição se limitam a lidar com as consequências dos danos ao cérebro. Mas conforme nosso entendimento da neurociência vai evoluindo, aliado a várias técnicas novas que nos permitem manipular os processos celulares, esse quadro pode mudar. A restauração de funções cerebrais perdidas já não é uma realidade tão distante.

Os incríveis desenhos de Ramón y Cajal, prêmio Nobel de Medicina em 1906 e pai da Neurociência.

Já se vão mais de cem anos desde que os desenhos anatômicos de Ramón y Cajal começaram a elucidar as redes de conexões neuronais que formam o nosso cérebro. O caminho não foi sem percalços. Um dos dois únicos prêmios Nobel de Portugal, por exemplo, foi Egas Moniz, o inventor da famigerada lobotomia (o outro foi Saramago). Durante muito tempo, a visão mais aceita era a de que as conexões do cérebro se desenvolvem rapidamente nos primeiros anos de vida, até chegarem ao seu apogeu aos vinte e poucos anos.

Depois disso, as habilidades cognitivas se estabilizariam até a meia-idade, quando começariam a se deteriorar. Hoje em dia se acredita que o cérebro vai se desenvolvendo ao longo de toda a vida, e algumas habilidades cognitivas vão melhorando até a idade avançada, como a capacidade de detectar relações entre informações diversas.

Porém, outras funções inegavelmente vão se deteriorando. A bainha de mielina que isola as fibras neurais vai se gastando, diminuindo a velocidade das conexões, e vários receptores na superfície dos neurônios já não funcionam como antigamente. Nesse cenário, os males mais temidos decorrentes da idade são os Acidentes Vasculares Cerebrais (derrames) e o Alzheimer, tidos como danos irreversíveis.

Durante os derrames, bloqueios de vasos sanguíneos no cérebro causam a morte de vários neurônios. Um estudo recente sugere que seja possível repor esses neurônios usando a terapia genética para recrutar células adjacentes para essa função. Graças aos estudos recentes sobre células tronco, já sabemos ser possível induzir certas células a retornarem a esse estado, de onde podem ser reprogramadas para se diferenciarem em outros tipos de células.

Felizmente, existem no cérebro, ao lado dos neurônios, células glia, que auxiliam as funções cerebrais. Ao contrário dos neurônios, as células glia se reproduzem, e podem ser reprogramadas para se reverterem a células tronco e depois em neurônios. Para isso, precisam receber um coquetel de proteínas que iniciam essa reprogramação.

Aí entra outra tecnologia recente, que utiliza vírus modificados para levar essas proteínas ás células glia. O laboratório de Gong Chen na Penn State University testou essa técnica para tratar de derrames em ratos, conseguindo não só transformar as células glia em neurônios, mas também fazer com que esses neurônios desenvolvessem as conexões dos neurônios perdidos restaurando as habilidades motoras e a memória dos pobres ratinhos.

As causas do Alzheimer ainda não são muito bem compreendidas, mas a doença está associada ao surgimento gradual de placas formadas pela agregação de certas proteínas (beta-amilóide e tau) nos neurônios, o que prejudica o seu funcionamento até acabar por matar as células.

Pesquisadores da Universidade de Queensland, na Austrália, recentemente descobriram que uma certa enzima envolvida na formação dessas placas pode ser inibida por uma droga já utilizada no tratamento da leucemia. O conceito foi demonstrado em ratos, e agora depende de uma maneira de transportar a droga através da barreira que protege o cérebro. Uma maneira promissora de conseguir ultrapassar essa barreira é através de raios de ultrassom focalizados, que abrem pequenas frestas temporárias na barreira, sem danificar os tecidos adjacentes. Essa técnica já está sendo testada para introduzir anticorpos que atacam as placas.

Um outro estudo do MIT conseguiu eliminar as placas associadas ao Alzheimer em ratos usando apenas som e luz. Nosso cérebro produz certas oscilações utilizadas para sincronizar partes distantes, especialmente quando precisamos prestar atenção em algo. Essas oscilações ficam comprometidas em pacientes com Alzheimer, e estão associadas à formação das placas. Os cientistas expuseram ratos com a doença a luzes estroboscópicas e um zumbido na freqüência certa, e conseguiram estimular essas oscilações danificadas. Surpreendentemente, os ratos recuperaram suas funções cognitivas, e apresentaram uma redução significativa na quantidade de placas. Talvez seja hora de levar seu avô à discoteca?

Caso tudo mais falhe, outro avanço recente significativo é o da preservação do cérebro após a morte. A empresa de criobiologia 21CM desenvolveu um método que conseguiu preservar todos os detalhes microscópicos de um cérebro de porco indefinidamente. Esse processo elimina qualquer possibilidade de reviver o cérebro, mas em tese permitiria o mapeamento de todos os seus trilhões de conexões no futuro, permitindo a reconstituição da memória.

Obviamente que aí entramos no terreno da ficção científica, mas essa técnica ajuda muito no estudo dessas conexões já no presente. E ao passo que vamos aprendendo a manipular a última fronteira da Medicina, não custa sonhar.

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Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

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Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.


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