Hoje é irresponsável, mas edição genética de bebês veio para ficar
Daniel Schultz
06/12/2018 11h12
Duzentos anos atrás, as primeiras cirurgias da era moderna eram feitas na surdina, evitando os protestos da população. Eram procedimentos terríveis, sem anestesia, que frequentemente terminavam na morte do paciente devido à ausência de antibióticos. Teria o médico o direito de violar o interior de uma pessoa? Quais seriam as consequências desse tipo de intervenção? Com o tempo as técnicas cirúrgicas evoluíram, se tornaram seguras e hoje salvam milhões de vidas por ano, sendo aceitas pela maioria das pessoas.
Na semana passada nos deparamos com um momento semelhante que, embora esperado, nos pegou de surpresa. O cientista chinês He Jiankui anunciou o nascimento dos primeiros bebês geneticamente modificados, numa história mal contada e recheada de intrigas e ilegalidades. He publicou uma série de vídeos no YouTube, falou durante um encontro internacional sobre Edição do Genoma Humano em Hong Kong e depois desapareceu.
O anúncio espantou o público geral e despertou uma enxurrada de críticas da comunidade científica. O próprio governo chinês descreveu o experimento como "de natureza extremamente abominável" e está investigando o caso. A grande maioria dos cientistas pioneiros das técnicas utilizadas por He, como Jennifer Doudna, descreveram o experimento como "horrível", "profundamente perturbador" e "monstruoso".
O prêmio Nobel David Baltimore, organizador da conferência de Hong Kong, chamou o episódio de "uma falha na autorregulação da comunidade científica". George Church, outro peso pesado do ramo, pegou mais leve e disse que "seu maior erro foi não ter cuidado bem da papelada". Mas afinal, o que tudo isso significa? Quais são os riscos desse procedimento?
A técnica de edição de DNA baseada no conceito de CRISPR utilizada por He vem revolucionando a biologia, e foi descrita no artigo inaugural desse blog. Essa técnica utiliza enzimas especializadas que podem ser programadas para reconhecer e cortar sequências específicas de DNA, permitindo a alteração de genes específicos.
Embora as técnicas de CRISPR tenham evoluído muito nos últimos anos, ainda são utilizadas com muita cautela em células humanas. O principal motivo desse cuidado é que o processo de edição ainda pode introduzir mutações indesejadas, danificando outros genes. Ainda assim, no ano passado cientistas americanos já haviam usado essa técnica para corrigir um gene causador de morte súbita em embriões humanos (que nunca foram implantados) e a Universidade de Harvard, mesmo depois de toda a controvérsia, vai começar a conduzir estudos envolvendo a edição genética de espermatozoides.
Dado o avanço rapidíssimo nessa área, o passo tomado por He parecia inevitável. Por isso mesmo, as críticas da comunidade científica foram focadas em como ele atropelou os procedimentos, a ética e as leis para "entrar para a história", sem se preocupar com as consequências de seus atos. Segundo ele próprio, He editou o DNA da primeira célula que dá origem ao embrião eliminando o gene CCR5, numa alteração que acaba afetando todas as células do organismo. Esse gene produz uma proteína utilizada pelo vírus HIV para entrar nos linfócitos do sistema imunológico, e sua eliminação teoricamente torna a pessoa imune ao HIV. Porém, a conduta de He não respeitou os procedimentos padrões rotineiramente seguidos em experimentos científicos, e uma observação mais detalhada pelos especialistas da área apontou diversas falhas graves:
– He alterou um gene sadio, ao invés de corrigir um gene defeituoso. As consequências dessa alteração não são bem estudadas, e certamente há maneiras muito mais seguras de se lidar com o vírus HIV.
– Os dados da pesquisa não foram publicados ou revisados por outros especialistas. Tudo o que sabemos sobre os detalhes da intervenção são baseados na apresentação de He na conferência de Hong Kong, que foi chamada de "amadora" por outros cientistas.
– Aparentemente, He não conseguiu alterar o gene CCR5 da maneira desejada. Ao invés de introduzir uma mutação conhecida, ele introduziu mutações nunca antes vistas, com consequências imprevisíveis. Além disso, He não conseguiu alterar todas as cópias do gene, e as crianças ainda apresentam cópias inalteradas.
– He trabalhou em segredo, não avisou sua instituição e não obteve os consentimentos apropriados de seus pacientes. Apesar de toda a falta de transparência, montou uma elaborada campanha publicitária pelas mídias convencionais para a divulgação de seus resultados.
Toda essa controvérsia acaba abalando a confiança da sociedade na transparência da comunidade científica e em sua capacidade de desenvolver técnicas seguras. Num momento onde até mesmo alimentos geneticamente modificados são vistos com desconfiança por segmentos da sociedade, a imagem de um cientista fora de controle desenvolvendo bebês geneticamente alterados em segredo pode pôr a perder uma infinidade de pesquisas sérias que podem trazer muitos benefícios, desde que feitas com cuidado. Até uma moratória em todos os experimentos do tipo já foi sugerida.
Mas afinal, o que podemos esperar dessa tecnologia? Hoje mesmo já há vários tratamentos envolvendo CRISPR em fase de testes. Em um tratamento promissor contra o câncer, células do sistema imunológico são colhidas, reprogramadas para atacar células cancerígenas e reintroduzidas no paciente. Tratamentos como esse são menos problemáticos, pois alteram apenas células específicas.
No caso dos bebês chineses, as mutações introduzidas acabam afetando todas as células do organismo, incluindo as células reprodutivas. Dessa maneira as alterações artificiais podem ser transmitidas também para seus descendentes, se espalhando pela população. Em um futuro próximo, poderemos usar métodos semelhantes ao de He para curar algumas doenças causadas por mutações específicas em certos genes, como a fibrose cística ou certos tipos de câncer, eliminando essas doenças hereditárias de famílias inteiras. Mas para isso precisamos que a técnica se torne mais segura, para não introduzirmos mutações indesejadas na população em geral.
Por enquanto não precisamos nos preocupar tanto com os chamados "bebês projetados". Traços como altura ou cor dos olhos dependem de uma complexa interação entre vários genes, de maneira que ainda não sabemos nem os pontos a serem editados para mudar essas características. Por enquanto. Mas o alerta está dado, e é essencial que a sociedade comece a pensar urgentemente nas maneiras em que deseja utilizar as tecnologias baseadas em CRISPR, desenvolvendo a regulamentação necessária.
É preciso condenar seriamente e prevenir abusos como o de He, mas evitando a crucificação de pesquisas sérias e importantes. O que faremos com o poder de controlar nossa própria evolução? No momento, conforme as discussões vão avançando, uma linha ética começa a ser desenhada. Um consenso vai se formando onde a cura de doenças por CRISPR vai ganhando apoio, enquanto o uso da técnica para motivos supérfluos vai rendendo rejeição. De qualquer maneira, precisamos nos familiarizarmos com a ideia, sem histeria. Ela veio para ficar.
Sobre os autores
Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.
Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.
Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.
Sobre o blog
Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.