Para onde o mundo vai http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta Thu, 27 Aug 2020 07:00:37 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Temporada de furacões piora pandemia nos EUA e deve afetar a todos nós http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/08/27/temporada-de-furacoes-piora-pandemia-nos-eua-e-deve-afetar-todo-o-planeta/ http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/08/27/temporada-de-furacoes-piora-pandemia-nos-eua-e-deve-afetar-todo-o-planeta/#respond Thu, 27 Aug 2020 07:00:37 +0000 http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/?p=1177

Imagem de satélite mostra tempestade Laura (abaixo) próxima a Cuba e furacão Marco (acima) na costa dos EUA (RAMMB/NOAA/NESDIS/AFP)

Por Cristina Schultz*

Em meio ao justificado pânico que se instaurou desde que o coronavírus tomou conta do mundo, é fácil perder de vista outros problemas que podem gerar prejuízos econômicos e sociais. Eventos climáticos extremos são alguns desses problemas e têm potencial para piorar ainda mais a pandemia.

Por evento extremo leia-se furacões, secas, enchentes, queimadas, ondas de calor e por aí vai. A previsão para a temporada de furacões no oceano Atlântico, que atinge a América Central e sul da América do Norte, é a mais ativa já avaliada pela Administração da Atmosfera de dos Oceanos dos EUA (NOAA).

Historicamente, até o início de agosto ocorrem em média duas tempestades tropicais (que podem se intensificar e gerar furacões), comparado às nove observadas até então esse ano.

Apesar da temporada de furacões começar apenas em junho, é o sexto ano seguido em que tempestades tropicais ocorrem antes do início da temporada. A estimativa do prejuízo econômico causado por tempestades e furacões até agora em 2020 é de  US$ 5,96 bilhões.

Quando se sai de casa, é confortante pensar que as pessoas ao seu redor passaram a noite seguras e isoladas em suas casas, que elas lavaram as mãos frequentemente. Seria bom ter certeza de que se elas se sentirem mal não vão hesitar em procurar atendimento de saúde e não vão se sentir obrigadas a trabalhar mesmo doentes, aumentando o risco de contágio.

Esse cenário já é complicado no Brasil por conta da desigualdade econômica que força muita gente a se arriscar e a viver sem os recursos necessários para fazer um isolamento social seguro. É ainda pior em áreas afetadas por furacões, onde enchentes e fortes ventos interrompem serviços essenciais como água e energia em cidades inteiras, desalojam milhares de pessoas e as levam a passarem dias em acampamentos improvisados lotados. Imagine a dificuldade de evacuar com segurança, com apenas alguns dias de sobreaviso, um hospital onde muita gente permanece sendo tratada durante a pandemia. Se parece um cenário absurdo no Brasil, pode ser a realidade em diversas comunidades no Caribe e nos EUA durante boa parte do ano.

Apesar de o tempo só poder ser previsto com alguma exatidão com poucos dias de antecedência, fazendo com que seja difícil antecipar um evento extremo, é possível através de modelos climáticos saber se a incidência de um determinado evento climático vai aumentar ou diminuir numa determinada região. A diferença entre a projeção de tempo (que dura alguns dias) e clima (que dura décadas) já foi abordada aqui.

Quando ocorre um evento extremo, não é responsável correr e apontar o dedo dizendo que com certeza esse exemplo foi culpa do aquecimento global. Eventos extremos sempre aconteceram e por vezes deixaram marcas profundas nas sociedades que sofreram com eles.

O que muda, atualmente, é a chance de um evento desse acontecer a cada momento. O furacão Harvey, que em 2017 inundou Houston (quarta maior cidade dos EUA) e causou bilhões de dólares de prejuízo, por exemplo, foi um evento fora do comum. Ainda que seja possível que esse determinado furacão ocorresse independente do aquecimento global, uma análise estatística da ocorrência e intensidade de furacões, associada a uma análise dos resultados de modelos climáticos, indica que se o furacão Harvey não foi 100% causado pelo aquecimento global, o estrago foi pelo menos amplificado.

Um estudo baseado em dados de chuva concluiu que a chance de um evento como o furacão Harvey ocorrer hoje em dia é três vezes maior do que há um século atrás, e que aquecimento global tornou as chuvas 15% mais intensas na região de Houston.

Estudos baseados em modelos estimam que até 2100 a chance de um evento desses ocorrer aumenta 18 vezes comparado à chance durante o período entre 1981-2000. Outros estudos também indicam que a urbanização (leia-se a quantidade de concreto em Houston) não só atrapalhou o escorrimento da água, levando a enchentes, como aumentou ainda mais a quantidade de chuva durante o furacão.

Nos últimos anos aumentou a incidência de furacões e também de queimadas no oeste dos EUA e na Austrália, de ondas de calor na Europa e na Índia, de enchentes e secas que atingem diversas partes do mundo.

O foco em como lidar com desastres ambientais atualmente tem sido em maneiras eficientes de prestar socorro para populações afetadas, mas no caso de uma tragédia anunciada nunca é cedo para começar a investir em prevenção e evitar que esses eventos climáticos (que são inevitáveis, infelizmente) virem também crises sanitárias. Além de eventos extremos que dificultam a prevenção de diversas doenças (não só covid-19), o aquecimento global também deve expandir áreas habitadas por diversos vetores de doenças, como mosquitos e carrapatos.

Numa sociedade globalizada, os problemas dos outros são nossos também, e não adianta pensar que eles só ocorrem em outros lugares. Em áreas duramente afetadas a população vai tender a se mudar, aumentando a migração ao redor do planeta e redistribuindo o uso de recursos naturais.

Uma coisa ficou bem clara durante a pandemia em que nos encontramos: é bom para todo mundo que todos tenham acesso a serviços de saúde, moradia e água tratada. Além de fazer a nossa parte tomando cuidado para evitar a contaminação por covid, é importante pensar adiante, em ideias e políticas públicas que levem em consideração a nova realidade do planeta.

*Cristina Schultz é oceanógrafa formada pela USP, com mestrado em meteorologia pelo Inpe e doutorado em oceanografia química pelo Woods Hole Oceanographic Institution (WHOI) e o Massachusetts Institute of Technology (MIT). Atualmente faz pós-doutorado na Universidade da Virgínia (UVA). Sua pesquisa é focada em combinar o uso de dados coletados em cruzeiros oceanográficos e modelos para entender as consequências das mudanças climáticas observadas durante as últimas décadas na química do oceano e no ecossistema marinho em áreas polares (mais especificamente na Península Antártica, no Golfo do Alaska e no Mar de Chukchi)

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Tem empresa grande lucrando com o seu DNA para buscar antepassados http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/08/23/em-busca-de-parentes-e-antepassados-seu-dna-vai-parar-nas-grandes-empresas/ http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/08/23/em-busca-de-parentes-e-antepassados-seu-dna-vai-parar-nas-grandes-empresas/#respond Sun, 23 Aug 2020 07:00:49 +0000 http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/?p=1165

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A maior base de dados de DNA foi recentemente comprada pelo fundo de private equity Blackstone por US$ 4,7 bilhões (mais de R$ 26 bilhões). A empresa Ancestry.com possui a mais extensa biblioteca de DNA dos Estados Unidos, com dados de mais de 18 milhões de pessoas. A empresa tem serviços focados no consumo de massa e vende testes de DNA a preço acessível à população.

Lembro quando morava em Boston que havia anúncios na televisão e Youtube sobre fazer esse teste fácil de DNA pelo correio para saber dos antepassados. No retorno, a pessoa recebe a informação de “origens” do DNA.

Essa busca por raízes é muito forte e o teste é um produto fácil de vender. O cliente recebe um relatório completo com informações como:

  • “Seu DNA tem 50% de DNA irlandês, 20% italiano, 5% nativo americano e outros” ou
  • “Seu DNA tem 65% judeu Ashkenazi, 20% islandês, 15% alemão”

Com a informação do seu DNA, ainda é possível descobrir primos distantes e outros braços da família. O banco de dados ainda conta com árvores genealógicas, e o usuário pode investigar suas conexões com o passado. 

Essa não é a única empresa no mercado americano. A 23andMe é uma das pioneiras e líderes de testes. Os kits de coleta de DNA são semelhantes: chegam pelo correio e a forma de amostragem do DNA é feita por saliva ou por esfregaço (swab) na bochecha. O que varia bastante entre uma empresa e outra é a forma de analisar o material, já que a quantidade de dados e qualidade da informação associada (como árvores genealógicas e local de origem) depende do banco de dados de DNA. 

Com esse pretexto inicial de obter informações de ancestralidade, os dados de DNA começaram a ser explorados de outras formas. Logo no início, empresas como a 23andMe começaram a enviar no relatório algumas informações de saúde. Por exemplo, se a paciente tinha risco aumentado de câncer de mama, já que algumas mutações (BRCA1 e BRCA2) estão associadas a formas mais agressivas de câncer. Para surpresa do cliente, além do teste genealógico, ele poderia receber a notícia de risco aumentado de câncer ou alguma outra alteração. Lembro de algumas discussões sobre ética, se os testes de DNA apontam para uma mutação, não seria antiético não reportar ao cliente? E quem fez o teste, gostaria de ter recebido essa notícia?

Os testes de DNA de consumo evoluíram e agora oferecem diversos adicionais de saúde, dados de risco aumentado de câncer, doença cardíaca e uma miríade de outras doenças e síndromes. 

Resolução de crimes e FBI

A GEDmatch.com é um site aberto para colocar dados “crus” de DNA. Os fundadores pensaram em facilitar a busca de parentes e montar árvore genealógica, mas foram surpreendidos quando a plataforma foi usada para desvendar um caso policial frio há décadas.

O site não faz os testes, mas permite que as pessoas coloquem seus testes de DNA e outros exames também, e tem algoritmos sofisticados de “match”. Hoje, essa base de DNA ajuda a acessar mais de 60% dos americanos com origens da Europa, não por conter todas essas pessoas no banco de dados, mas a parentalidade permite encontrar as raízes e conexões das outras pessoas. Informações de primos e filhos fornecem pistas das relações de família e, assim, conseguimos alcançar indivíduos fora da base. 

Nos Estados Unidos, todas as empresas de teste de DNA de consumo deixam suas bases disponíveis para o FBI. Ou seja, esses dados estão à disposição para resolver crimes também e ajudar em investigações policiais.

Você está dando muito mais do que imagina

Se o DNA pode ser usado de tantas formas, justamente porque tem informações indeléveis suas e da sua história, por que damos essas informações a essas empresas? Sim, nas entrelinhas há cessão dos dados a estes bancos! 

Os testes são financeiramente acessíveis, pois ao buscar dados sobre sua história, você deixa muitas outras informações disponíveis. O detalhe é que toda a informação só é construída com os DNAs coletados e com a forma como eles são analisados. 

Uma vez que essas empresas de teste de DNA são compradas, esse asset dos dados de DNA são passados para outros donos e podem ser explorados de outras formas. Como exemplo, se houvesse uma característica genética recém-descoberta de uma doença, esse dado de DNA daria à indústria a informação de distribuição da doença, também informação para busca de novos alvos para terapia gênica e fornece subsídios para avanços da medicina de precisão. 

Existe um aspecto bastante salutar: a diversidade de informação populacional nessas bases que pode ser usada para descobertas na saúde. Mas também pode ter desdobramentos que não foram imaginados quando a pessoa buscou entender melhor sua ancestralidade.

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Sequência trágica: como a ciência explica a megaexplosão em Beirute http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/08/14/sequencia-tragica-como-a-ciencia-explica-a-megaexplosao-em-beirute/ http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/08/14/sequencia-tragica-como-a-ciencia-explica-a-megaexplosao-em-beirute/#respond Fri, 14 Aug 2020 07:00:15 +0000 http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/?p=1148

Homem observa os escombros da explosão no porto de Beirute (Issam Abdallah/ Reuters)

Nessa última semana assistimos horrorizados à grande explosão do porto de Beirute. Os incontáveis vídeos do incidente, filmado por todos os ângulos, invariavelmente começam com os habitantes expressando preocupação quanto a um incêndio já de grandes proporções em um dos armazéns do porto. Depois o que se vê é uma das maiores explosões não-nucleares da história varrer a cidade, com onda de choque e forma de cogumelo.

O evento chacoalhou os prédios no Chipre e em Israel, a centenas de quilômetros dali. No lugar do armazém, ficou uma grande cratera. Não foi a maior explosão acidental da história, posto que pertence à explosão que destruiu Halifax, no Canadá, em 1917. Mas há quase 80 anos não se via nada igual. Num lugar turbulento como Beirute, chegou-se a suspeitar de terrorismo. Mas no final foram o descaso e a negligência os responsáveis pelo maior ataque à população do Líbano.

Em 2013, o navio Rhosus saiu da Geórgia em direção a Moçambique carregando 2.750 toneladas de nitrato de amônio para serem utilizados por uma mineradora. O navio parou em Beirute, aparentemente por problemas mecânicos, e depois de ser reprovado numa inspeção foi impedido de seguir viagem. A tripulação, depois de passar um ano presa no navio, foi repatriada. O dono do navio foi à falência, e depois que a mineradora perdeu o interesse pela carga, abandonou o navio.

Em 2014, o governo libanês acabou confiscando a carga, e o navio abandonado permaneceu no porto até afundar alguns anos depois. Assim, as quase 3 mil toneladas de nitrato de amônio permaneceram empilhadas no armazém número 12 pelos seis anos seguintes, enquanto os funcionários alfandegários, buscando uma solução, esbarravam na burocracia libanesa.

O nitrato de amônio é produzido em grandes quantidades no mundo todo para ser utilizado como fertilizante na agricultura e pode até mesmo ser encontrado como um mineral no deserto do Atacama. É também misturado com combustíveis para ser utilizado como explosivo na mineração. Porém, o nitrato de amônio não se inflama sozinho. Uma das dificuldades em se conseguir grandes explosões é garantir a disponibilidade de oxigênio o suficiente para a queima total do combustível, e é aí que o nitrato de amônio ajuda.

Quando misturado a combustíveis, o nitrato de amônio fornece oxigênio numa concentração muito maior que o ar à nossa volta, facilitando a combustão. Porém, em temperaturas mais altas, o nitrato de amônio pode se decompor violentamente, liberando gases e causando uma explosão. Foi isso que causou a explosão de Tianjin em 2015.

Para se armazenar o nitrato de amônio com segurança, várias medidas precisam ser tomadas. A primeira é afastar o material da áreas populadas e usar um lugar bem ventilado e com um sistema de chuveiros anti-incêndio.

O acúmulo de grandes quantidades do material permite que a combustão se complete durante a explosão antes que o material combustível saia voando pelos ares. Assim, é necessário manter uma distância segura entre os sacos de armazenamento e impedir que a umidade aglutine os grãos de nitrato de amônio num bloco. Isso além de obviamente não armazenar conjuntamente com outros materiais que possam servir como combustível.

Infelizmente, nada disso foi feito em Beirute, e as toneladas de nitrato de amônio permaneceram empilhadas no coração da cidade. Ainda assim é difícil de se desencadear uma explosão. É preciso um incêndio com temperaturas altas e combustível suficiente para sustentá-lo.

Não se sabe ao certo como se iniciou o incêndio em Beirute, suspeita-se de um carregamento de fogos de artifício, mas durou um bom tempo, até que o nitrato de amônio começasse a se decompor.

No começo é possível ver a onda de choque, aquela fina esfera esbranquiçada se movendo do foco da explosão e destruindo tudo em seu caminho.

A onda de choque se movimenta mais rápido que a velocidade do som, e o branco que se vê é o vapor do ar se condensando brevemente devido à baixa pressão gerada logo atrás da frente da onda. Depois veio a grande nuvem de um gás avermelhado, que tomou o céu de todo o Líbano. Esses são óxidos de nitrogênio, resultantes da decomposição do nitrato de amônio, e são tóxicos e poluentes.

O desastre no Líbano foi catastrófico por motivos além da explosão. O impacto numa área central da cidade incluiu a destruição de hospitais importantes, que já andavam sobrecarregados pelo coronavírus, impedindo que os feridos fossem prontamente atendidos.

O Líbano já vinha numa crise econômica que gerava descontentamento na população. Agora, com a destruição do porto, juntamente com o maior silo de grãos do país, os impactos econômicos serão ainda mais severos.

Essa é uma crise que veio em cima de outras crises –econômicas, políticas e de saúde. O governo já renunciou. Que o desastre ao menos catalise as mudanças que os libaneses tanto esperam.

Forte explosão atinge Beirute, no Líbano, e deixa pessoas feridas

Forte explosão atinge Beirute, no Líbano, e deixa pessoas feridas

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Está em busca de um bom app de saúde mental? Saiba como escolher http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/08/08/de-olho-na-eficacia-e-privacidade-saiba-como-escolher-apps-de-saude-mental/ http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/08/08/de-olho-na-eficacia-e-privacidade-saiba-como-escolher-apps-de-saude-mental/#respond Sat, 08 Aug 2020 07:00:36 +0000 http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/?p=1138

Ulrike Mai/ Pixabay

Temos hoje uma infinidade de apps, gadgets e sensores que são tão flexíveis e convenientes que podemos levar a qualquer lugar. A área de saúde avançou muito com a mobilidade (mHealth). Surgiram diversos aplicativos de smartphone que prometem melhorar ou acompanhar sua saúde. 

No campo da saúde mental, existem apps para fazer terapia em teleconferência, para seguir seu humor e oferecer habilidades de lidar com elas, para aliviar o estresse, fazer meditação, entre outros. Um estudo do JAMA indicou que existem mais de dez mil apps no mercado.

Apesar de apps prometerem muitas coisas, é necessário uma boa dose de cautela. Quando você escolhe um aplicativo, tenha em mente duas bases principais: se o conteúdo tem fundamento científico e se entende para onde seus dados médicos irão. Muitos apps não seguem os guidelines da psiquiatria. 

Por exemplo, para um app de prevenção de suicídio a conduta é seguir seis diretrizes clínicas:

  1. Acompanhar os pensamentos suicidas e o humor;
  2. Desenvolver planos de segurança;
  3. Recomendar ações para impedir pensamentos suicidas;
  4. Ter fonte de informações e educação;
  5. Acesso a redes de apoio e;
  6. Acesso a aconselhamento de emergência.

Dos aplicativos avaliados no estudo da BMC Medicine, apenas 7% dos apps estudados seguiam as diretrizes. Essa é uma amostra de quantos apps seguem a ciência e a medicina baseada em evidência. A resposta clara é: apenas em poucos produtos.

Para ajudar nesse desafio, a divisão de psiquiatria digital do BIDMC desenvolveu algumas perguntas a serem feitas.

Na hora de baixar um app para acompanhar seu humor, procure saber:

  • Quem desenvolveu o app?
  • Existe política de privacidade?
  • Que medidas de segurança estão em vigência?
  • Que tipo de dados do usuário o aplicativo coleta e esses dados são compartilhados?
  • Quais informações o aplicativo recebe e o que é retornado ao usuário?
  • O aplicativo é baseado em evidências?
  • Faz o que afirma fazer?

Os pesquisadores desenvolveram uma série de perguntas que dão um panorama “diagnóstico” do app.

Lá no site, já existem vários apps analisados.

Os cientistas esperam que com a conscientização possa haver um repositório digital com a informação atualizada de cada app, como uma curadoria de quais são mais interessantes. E a decisão de uso é sempre do paciente, mas uma decisão muito melhor tomada quando há informação.

A questão levantada da privacidade também é importante.

Nos Estados Unidos, o governo lavou as mãos quanto ao que se faz com os dados médicos individuais. Quando dentro de hospitais e sistemas de saúde, os dados estão protegidos por uma política de privacidade, ética e transferência de dados chamada de HIPAA. Agora, é permitido ao paciente baixar ou dar acesso aos apps a todos seus dados médicos. Todo o histórico, consultas, exames… Pasmem!

Uma vez fora dos arquivos de um hospital, esses dados podem ser repassados ou vendidos a terceiros. O ponto central é que o usuário do aplicativo não está alerta que na verdade está perdendo sua privacidade, e que estará exposto a abusos. Por outro lado, existe uma nova tendência em que o próprio paciente pode monetizar seus dados médicos.

Sabemos que ansiedade, depressão e estresse são alguns dos distúrbios mentais mais comuns. Em algum momento da vida, até 30% da população mundial lidará com algum transtorno mental. E, além disso, existem eventos estressores que as pessoas passam durante a vida que o apoio e promoção da saúde mental são importantíssimos.

De fato, o que os apps oferecem podem melhorar a saúde mental dos pacientes. Entretanto, temos que ficar espertos quanto a muitos aspectos desses apps.

Olhar para a eficácia do que é prometido é um ponto importante, e para isso o app tem que estar associado a estudos científicos. Outro aspecto fundamental é garantir seu direito a privacidade, existem muitas questões a serem respondidas para decidir conscientemente antes de usar um app de saúde mental.

Nesse post demos algumas ferramentas a você. Fique atento, não deixe de exercer seus direitos e senso crítico!

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Devemos nos preocupar com a pressa em encontrar uma vacina contra covid-19? http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/08/03/devemos-nos-preocupar-com-a-pressa-em-encontrar-uma-vacina-contra-covid-19/ http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/08/03/devemos-nos-preocupar-com-a-pressa-em-encontrar-uma-vacina-contra-covid-19/#respond Mon, 03 Aug 2020 07:00:40 +0000 http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/?p=1130

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A demora no desenvolvimento da vacina vai fazer a diferença entre pensarmos na covid-19 como uma fase passageira ou como a nova realidade da humanidade. Para isso, cientistas ao redor do mundo estão trabalhando para criar em um ano e meio algo que geralmente leva mais de uma década. Até agora há muitas razões para um otimismo cauteloso, com várias vacinas mostrando potencial. Porém, é preciso ter paciência, pois é preciso ter o máximo de certeza possível antes de injetar a humanidade toda com um remédio feito às pressas.

Como já é bem sabido, a volta à “vida normal” de antigamente depende de uma vacina para a covid-19. Até conseguirmos vacinar a maior parte da humanidade, teremos que conviver com as medidas de distanciamento social, sob o risco de perder o controle da doença e dizimar boa parte da população.

Menos de 6% das vacinas desenvolvidas acabam sendo aprovadas, pois não apresentam benefícios ou porque causam reações adversas. Ainda não existe nenhuma vacina para um coronavírus, e nosso recorde de tempo para o desenvolvimento de uma vacina totalmente nova é de quatro anos.

Para tentar obliterar esse recorde, foi montado um esforço descomunal. Já no começo da epidemia especialistas apontavam que para se conseguir “velocidade, larga escala e acesso” eram necessários “muitos chutes a gol e muitos gols saindo desses chutes” (Anthony Fauci, diretor do NIAID – Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas).

O governo americano lançou o programa “Warp Speed”, uma parceria pública-privada que destinou US$ 10 bilhões para o desenvolvimento de vacinas. Oito empresas já foram beneficiadas. Bill Gates anunciou que vai começar a construir sete fábricas para vacinas diferentes. No final das contas, é esperado que das dezenas de vacinas sendo pesquisadas ao mesmo tempo sobrem no máximo duas ou três.

Como produzir vacinas 10 vezes mais rápido

A produção de vacinas começa com a pesquisa acadêmica. Quando os testes de laboratório apontam para uma estratégia promissora, começa o trabalho pré-clínico, que almeja produzir vacinas para o começo dos testes.

Os testes clínicos vão aumentando de tamanho, com algumas dezenas de voluntários na primeira fase, depois centenas na segunda fase e milhares na terceira.

Depois de cada uma das fases, os dados são analisados, revisados e aprovados antes do início da fase seguinte. Quando a eficiência e segurança da vacina é estabelecida, começa a construção de fábricas com capacidade para produzir milhões de doses. Cada vacina é produzida por um método diferente.

Depois vem o período de manufatura. Só depois disso, já com grandes quantidades da vacina produzida, vem a aprovação final pelo governo federal, que passa da ciência para as questões legais de responsabilidade.

Por fim, vem o esforço final de distribuir a vacina e convencer a população a tomá-la.

Para conseguir produzir a vacina em tempo recorde, é preciso tomar atalhos e realizar várias dessas etapas ao mesmo tempo.

Começamos por utilizar o que já sabemos sobre coronavírus. O SARS-CoV-2 é 80% idêntico ao SARS de 2002, e já existiam esforços pela vacina do SARS antes da pandemia de covid.

As fábricas estão sendo construídas antes mesmo dos testes serem concluídos, e fábricas de outras vacinas estão sendo remodeladas para o covid.

Os testes clínicos estão estão sendo apressados, com novas fases começando antes da conclusão das fases anteriores. Esses testes estão sendo conduzidos em áreas com grande incidência da doença, como o Brasil e os Estados Unidos.

Toda essa pressa vem dando frutos, e já temos 6 vacinas nas fases finais de testes e uma vacina chinesa já aprovada para uso limitado.

Apostando em vários tipos de vacina

Vacinas funcionam induzindo uma resposta imunológica a algum antígeno, um pedaço do vírus que nosso sistema imunológico reconheça como invasivo. Nossos linfócitos então produzem anticorpos contra esse antígeno, que acabam nos protegendo também contra o vírus. Nosso sistema imunológico possui células de memória que, quando ativadas, “lembram” do antígeno, induzindo respostas imunológicas rápidas no caso de infecções futuras. Assim, o primeiro passo pela vacina é encontrar um antígeno conveniente, que resulte numa proteção duradoura.

No caso da covid, estudos com o SARS sugerem que a proteína spike que reveste o vírus é outro excelente candidato, usado pela maioria das vacinas sendo testadas. O segundo passo é levar antígenos o suficiente à corrente sanguínea para gerar uma resposta imunológica. É aí que os métodos divergem.

Uma parceria entre a Universidade de Oxford e a farmacêutica AstraZeneca desenvolveu uma vacina que usa um adenovírus inofensivo de chimpanzés levando material genético com instruções para a produção da proteína spike. Assim, o antígeno é produzido pelas nossas próprias células.

Esse método nunca produziu uma vacina aprovada, mas a vacina de Oxford vem liderando a corrida, com resultados surpreendentes. Os filhos trigêmeos da criadora da vacina Sarah Gilbert, todos estudantes de bioquímica, participaram dos testes iniciais.

A empresa de biotecnologia Moderna, que ainda não tem uma vacina aprovada no currículo, vem desenvolvendo em parceria com o NIH uma vacina que leva o material genético codificando a proteína spike às nossas células através de nanopartículas lipídicas sintéticas. Esse método também nunca produziu vacinas aprovadas, mas a Moderna gerou muito frisson ao iniciar os testes clínicos apenas 66 dias após o sequenciamento do SARS-CoV-2.

A Novavax, outra empresa de biotecnologia que nunca trouxe uma vacina ao mercado, recebeu US$ 1,6 bilhão do programa Warp Speed para desenvolver uma vacina que usa nanopartículas para levar a própria proteína spike, juntamente com adjuvantes para estimular a resposta imunológica.

Várias empreitadas chinesas também estão na briga, a maioria usando métodos mais tradicionais que utilizam versões inativadas do vírus como antígenos. Os testes clínicos na China também vão a todo vapor, testando os limites da ética, mas com resultados animadores. Outra empresa chinesa, a CanSino, também publicou bons resultados com uma vacina de adenovírus.

É preciso agir com  cautela

Com uma vacina aprovada, poderemos planejar nossa volta à normalidade. Priorizaríamos inicialmente a vacinação de profissionais da saúde, idosos e pessoas em grupos de risco, e, conforme a produção da vacina avançasse, vacinaríamos o restante da população.

Porém, há muito o que se temer quanto às conseqüências de se apressar demais o processo. Vacinas ainda não exaustivamente testadas, assim como qualquer droga, podem apresentar problemas. Caso esses problemas surjam já durante a vacinação em massa, podem por tudo a perder, pois já existem movimentos organizados antivacina esperando pelo menor deslize.

Nos EUA já se teme que o governo Trump tente forçar a liberação de alguma vacina antes de disputar a reeleição em novembro, um prazo impossível de ser cumprido de maneira responsável.

Mesmo com todos os avanços, é importante não contar com a vacina antes de ela existir. Nossos planos não podem depender disso, e todo o nosso fortíssimo desejo de voltar ao normal infelizmente não vai ajudar a vacina a funcionar.

Como já aprendemos com a cloroquina, é importante não botar o carro na frente dos bois e esperar pelas comprovações.

Ano passado foi aprovada a primeira vacina contra o ebola, 43 anos depois de o vírus ser descoberto. O HIV continua sem vacina, apesar de todo o investimento. No caso da covid, temos boas razões para ter esperança em uma vacina para o meio do ano que vem, dificilmente antes disso. Mas não se surpreenda se demorar alguns anos, e ainda assim terá sido um grande feito.

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Estudo aponta que triagem feita por bots não funciona para covid-19 http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/07/23/estudo-aponta-que-triagem-feita-por-bots-nao-funciona-para-covid-19/ http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/07/23/estudo-aponta-que-triagem-feita-por-bots-nao-funciona-para-covid-19/#respond Thu, 23 Jul 2020 07:00:29 +0000 http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/?p=1112

Mohamed Hassan/ Pixabay

Desde o início da pandemia, todos nós temos aprendido muito sobre o que é ter covid-19. Observações de vários sintomas como febre, tosse seca, falta de ar, perda de olfato e diarreia foram feitas. 

Os sintomas são percepções de mudança do seu corpo. São apenas uma indicação que podem levar a vários diagnósticos e, em geral, precisam de investigação. 

Como resultado, os sintomas te levam a procurar atendimento médico. O grande medo em tempos de covid é provocar uma onda de pacientes aos hospitais. Esse aumento do fluxo pode sobrecarregar a capacidade de atendimento da rede de saúde. Mas quem deve ir ao hospital?

Pensando em orientar o paciente e não lotar os hospitais, alguns serviços de saúde lançaram bots para encaminhar as pessoas com sintomas. Os bots são um chat online que vão lançando perguntas e direcionam as próximas de acordo com as respostas, de forma “inteligente” e automática. Assim, em algum momento os bots recomendam se você tem que buscar ou não atendimento médico.

Um estudo recém-publicado na revista Digital Medicine da Nature desbancou os testes orientados por bots. Os cientistas da Universidade de Stanford, Alison Callahan e Ethan Steinberg, olharam os sintomas relatados por pacientes na base de dados do sistema de saúde ligado à universidade. Eles buscaram todos os tipos de sintomas das anotações de mais de 1.700 pacientes, como dispneia, tosse, estado febril, covid, náusea e vômito, dor, paracetamol, fadiga, edema, dor no peito, erupção cutânea.

Baseado nesses relatos, os bioinformatas fizeram testes para ver se era possível fazer a triagem de pacientes baseada em sintomas. Eles analisaram diversos tipos de doenças respiratórias como adenovírus, vírus influenza A, metapneumovírus humano, vírus parainfluenza, vírus sincicial respiratório (RSV), rinovírus e SARS-CoV-2 (o coronavírus que causa a doença covid-19).

Como resultado, duas doenças respiratórias (RSV e influenza A) tinham poder moderado de serem diferenciados pelos sintomas (as áreas sob a curva do classificador eram 0.77 e 0.73, respectivamente). Entretanto, o SARS-CoV-2 e demais doenças respiratórias testadas não tiveram poder diagnóstico e com áreas entre 0.60 e 0.68 não são assertivos o suficiente como teste.

Ou seja, não tem como orientar um paciente pelo relato de sintomas e os testes de bot não servem, em realidade, como triagem. É um grande alerta para todos: não consulte bots para a covid-19!

Quando procurar atendimento médico

Os novos protocolos recomendam que o paciente busque o serviço de saúde assim que houver sintomas, mesmo que leves. Ao invés de pedir para as pessoas ficarem em casa, a indicação do Ministério da Saúde é que a pessoa busque a triagem clínica e testes nos postos de saúde. 

A doença do novo coronavírus (covid-19) ainda é praticamente desconhecida e difícil de entender. Tanto os sintomas quanto os efeitos sistêmicos estão sendo estudados. Ainda não se sabe, por exemplo, por que as pessoas respondem diferentemente ao vírus ou se é possível desenvolver imunidade… São muitas dúvidas investigadas pelos cientistas que irão ajudar no combate à pandemia. Enquanto isso, fique em casa se possível, e siga as orientações para se proteger ao máximo.

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Veja ascensão e queda da cloroquina como possível tratamento da covid http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/07/14/ja-podemos-abandonar-o-uso-de-cloroquina-para-tratar-a-covid-19-entenda/ http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/07/14/ja-podemos-abandonar-o-uso-de-cloroquina-para-tratar-a-covid-19-entenda/#respond Tue, 14 Jul 2020 07:00:58 +0000 http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/?p=1098

Reprodução

Nos últimos dias, com a doença do presidente Jair Bolsonaro, voltamos às acaloradas discussões sobre a cloroquina. Funciona ou não funciona? Você tomaria?

Essa droga antimalária, antes desconhecida pela maioria da população, caiu na boca do povo e se tornou um dos temas mais comentados da pandemia de covid-19. Apontada como grande esperança de curar a covid em testes preliminares, infelizmente a cloroquina acabou ganhando muita fama precipitadamente e se tornou alvo de uma discussão muito mais política que científica.

O público em  geral, recebendo informações desencontradas, muitas vezes acaba se apegando à única “cura” conhecida. Outras vezes acaba duvidando de todo o processo científico. Mas, afinal, o que sabemos sobre a cloroquina? Há alternativas para se tratar a covid?

O desenvolvimento de novas drogas é um processo lento, que pode durar mais de uma década. Começa com a ciência básica, passa por testes in vitro, depois testes em animais, até chegar nos testes clínicos. Esses são feitos em várias fases, com mais e mais participantes, para se garantir que a droga é segura.

Se tudo der certo a droga é aprovada, mas apenas uma minoria dos compostos estudados chega a esse ponto. Por isso, no início da pandemia se focou em procurar tratamentos para a covid usando drogas já existentes, que já estivessem aprovadas e disponíveis. A hidroxicloroquina, um imunomodulador com propriedades antivirais, era um dos compostos mais promissores, conseguindo diminuir a carga viral de células infectadas em testes de laboratório.

O resultados eram animadores, com certeza. O FDA americano liberou os testes, e rapidamente a hidroxicloroquina, barata e abundante, foi incluída em protocolos médicos mundo afora. Porém, a comunidade científica, já acostumada a ver drogas promissoras falharem nos testes, começou a se preocupar com toda a comemoração antes da hora. Ainda não se sabia se a droga funcionava, faltava concluir os estudos clínicos.

Quem conduz os estudos e como são feitos

Muito se discute sobre os interesses econômicos que podem influenciar na adoção dos medicamentos. As indústrias farmacêuticas investem pesado em pesquisa e com certeza são motivadas pela venda de seus remédios. Porém, a publicação de artigos científicos exige a divulgação de quaisquer conflitos de interesse por parte dos pesquisadores. Assim, os estudos acadêmicos sobre a eficiência da hidroxicloroquina são feitos por instituições sem vínculo com a indústria farmacêutica, e são financiados por mecanismos independentes.

Aos pesquisadores não interessa o resultado da pesquisa, apenas a publicação de destaque. Caso se saiba de algum vínculo indevido, o estudo com certeza é posto sob suspeita. E no final das contas, no longo prazo, a própria indústria farmacêutica está interessada em saber se seus remédios realmente funcionam.

As primeiras indicações sobre a eficácia da droga vêm de estudos retrospectivos e observacionais, mais simples de serem conduzidos, porém mais imprecisos.

Nesses estudos os pesquisadores analisam estatisticamente os casos conduzidos em certos hospitais, que seguiram seus próprios protocolos sem necessariamente ter os estudos em mente. Assim, os casos analisados não foram todos conduzidos da mesma maneira, e a droga pode ter sido usada somente em situações específicas. Quando foi administrada? O paciente tinha outras complicações? Tomou outros remédios? Os autores desses estudos tentam controlar todas essas outras variáveis com métodos estatísticos, mas esses resultados sempre estão abertos a criticismo.

Mais para frente começam a sair os estudos controlados e randomizados, muito maiores e demorados. Nesses estudos, um grande número de pacientes voluntários é tratado exatamente segundo os mesmo protocolos, com exceção à droga administrada.

Sem saber o que estão tomando, alguns pacientes recebem a droga a ser testada e outros recebem apenas placebo. Sendo essa a única diferença, podemos saber com certeza se a droga ajuda ou não. Estudos randomizados são a forma mais incontestável de evidência clínica.

Pixabay

O que dizem os estudos sobre a hidroxicloroquina

Os maiores estudos randomizados infelizmente não encontraram vantagem nenhuma na cloroquina.

No começo de junho, pesquisadores do Reino Unido publicaram o maior desses estudos até então, o Recovery, que analisou o uso da hidroxicloroquina em 1542 pacientes mais graves, sem encontrar benefícios. A OMS (Organização Mundial da Saúde) também conduziu seu próprio estudo randomizado, o Solidarity, que também já foi encerrado sem encontrar nenhum benefício da hidroxicloroquina. Esses estudos, grandes e bem conduzidos, descartaram o uso da hidroxicloroquina em casos mais graves de covid.

Restava ainda a possibilidade de que a hidroxicloroquina ainda fosse útil no começo da doença, antes de o quadro se complicar.

Um estudo da Universidade de Minnesota analisou essa possibilidade, mandando hidroxicloroquina ou placebo para 821 pessoas que tinham sido expostas recentemente à covid, afim de verificar se a cloroquina é capaz de prevenir o desenvolvimento da doença. Outra vez, nenhuma diferença foi encontrada.

Um segundo estudo do tipo foi conduzido na Espanha com 2.300 pacientes, também sem encontrar benefícios no uso da cloroquina na fase inicial da doença. Esses estudos praticamente jogaram a pá de cal nas possibilidades de uso da hidroxicloroquina.

As únicas controvérsias que ainda pairam sobre a hidroxicloroquina vêm de estudos observacionais menores, que frequentemente apresentam resultados inconclusivos. Alguns desses estudos ganharam alguma notoriedade recentemente.

O prestigioso jornal Lancet acabou retirando um artigo que associava a hidroxicloroquina a uma maior taxa de mortalidade.

Recentemente, um grupo de Michigan reportou benefícios da hidroxicloroquina num estudo que reanimou a discussão. Porém, esse estudo tem muitas limitações, e vai contra outros estudos do tipo nos EUA. Um dos problemas é como levar em conta a decisão do hospital de não administrar hidroxicloroquina aos 16% dos pacientes que não foram tratados. Essa decisão pode ser baseada num prognóstico já ruim do paciente ou nos riscos que a hidroxicloroquina traz a pacientes cardíacos, o que aumentaria a mortalidade do grupo não-tratado por outros fatores.

Em geral, apesar de esses estudos ajudarem a entender os nuances do funcionamento da droga, não chegam a por em dúvida os resultados dos estudos randomizados, muito maiores e controlados.

Por fim, até a OMS reafirmou que a substância é completamente ineficaz no tratamento da covid-19. Ainda se analisa a possibilidade do uso profilático da cloroquina para profissionais de saúde, mas mesmo esses estudos estão com os dias contados.

Na linha da ciência básica, os resultados da cloroquina também deixaram a desejar.

Um estudo da Universidade da Califórnia em San Francisco analisou todas as interações entre proteínas do SARS-CoV-2 e proteínas humanas, identificando 69 compostos químicos capazes de interferir no funcionamento do vírus. Esse grupo inclui a hidroxicloroquina, o mais barato e acessível desses compostos.

A hidroxicloroquina faz parte de uma classe de compostos com afinidade pelos receptores Sigma1 e Sigma2 no retículo da célula, onde o vírus se reproduz. Porém, a análise bioquímica mostrou que a concentração de cloroquina necessária para saturar esses receptores também afetaria outros receptores fundamentais para o funcionamento da célula. Ou seja, a dose necessária para que a cloroquina seja ativa contra o vírus causaria também efeitos colaterais severos.

Há drogas alternativas?

Até agora, apenas duas drogas comprovadamente ajudam contra o coronavírus.

Um estudo randomizado com 1.063 pacientes mostrou que o remdesivir, um conhecido antiviral, reduziu o tempo médio de internação de pacientes graves de 15 para 11 dias. Inclusive, Donald Trump, que tão gentilmente cedeu seus estoques de cloroquina ao Brasil, acabou de comprar todo o estoque mundial de remdesivir. Porém, o remdesivir não mostrou nenhuma redução na taxa de mortalidade da doença.

A única droga que já conseguiu reduzir a mortalidade do covid foi a dexametasona, um esteroide comum e barato. O mesmo estudo inglês Recovery que não viu benefícios na cloroquina observou uma redução de um terço na mortalidade de casos graves de covid.

Esteroides funcionam reduzindo a intensidade da resposta imunológica, o que é uma faca de dois gumes. Se por um lado ajudam em casos mais graves onde a reação imunológica se descontrola e ataca o próprio organismo, por outro lado podem comprometer nossa resposta natural ao vírus. Por sinal, em casos mais leves a dexametasona chegou a causar um leve aumento na mortalidade.

Por enquanto, não há milagres. Quanto mais se sabe sobre a covid, mais o tratamento da doença vai melhorando, agora até com o uso desses novos medicamentos em alguns casos, e a mortalidade vai se reduzindo. Mas ainda não temos a bala de prata.

Enquanto isso, seguimos tentando. Porém, essas tentativas dependem do uso inteligente dos recursos disponíveis. É importante reconhecer quando certas direções já se mostram infrutíferas, independentemente do tanto que já foi investido, para podermos procurar outros caminhos.

Estudos clínicos são caros e demorados, e envolvem muitos pesquisadores e instituições. Ficar provando diversas vezes a obsolescência da mesma droga só atrasa o processo. Eu, por exemplo, acredito que consigamos controlar a epidemia de covid se a ciência, o governo e a sociedade se empenharem nesse objetivo comum. E você?

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Está só ou sente solidão na quarentena? A resposta pode indicar uma doença http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/07/09/esta-so-ou-sente-solidao-na-quarentena-a-resposta-pode-indicar-uma-doenca/ http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/07/09/esta-so-ou-sente-solidao-na-quarentena-a-resposta-pode-indicar-uma-doenca/#respond Thu, 09 Jul 2020 07:00:59 +0000 http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/?p=1090

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Antes mesmo do isolamento social, já se falava na solidão como uma nova epidemia global. Estudos estimam que um terço da população mundial seja afetada, e que uma a cada doze pessoas estejam experimentando estados mais crônicos desta condição. 

Afinal, o que é solidão? Neurocientistas distinguem o “estar só” da “solidão”. Estar só é um efeito do estilo de vida moderno, especialmente ocidental. Em pouco menos de um século, as famílias se tornaram mais nucleares, menores e indivíduos começaram a se mudar constantemente por causa do trabalho. Nos Estados Unidos, uma a cada quatro pessoas mora sozinha, morar só tornou-se mais comum. A solidão tem a ver com a percepção de isolamento, e a pessoa não precisa estar só, pode haver solidão mesmo em grupos ou multidão.

O sentimento de estar só pode ser até benéfico, pois leva a pessoa a buscar companhia. A solidão, pelo contrário, é identificada pela angústia, se torna mais grave quando o sentimento intensifica o afastamento de contato social, aumentando o sentimento de inadequação do indivíduo. Mais que um desconforto, a solidão pode ser considerada uma doença.

O ser humano é programado para viver em grupos, e existe uma angústia quando está longe de seu grupo, sozinho, ou convivendo com um grupo de pessoas desconhecidas. Antigamente, esses desconhecidos poderiam até matar o indivíduo estranho ao grupo. Hoje, felizmente, leis proíbem isso e vivemos em outra configuração social. Esse sentimento desencadeia uma reação de fuga ou luta, com estado de hiper vigilância, que torna as pessoas sozinhas alertas, ansiosas e em estresse.

Tempos de isolamento social pelo coronavírus

O momento de quarentena que vivemos aproxima-se muito da condição de solidão. O isolamento social torna as pessoas reclusas, sem contato social, com aumento da ansiedade e tristeza. A grande diferença é que o isolamento da quarentena é temporário! Lembrando que solidão crônica é sobre o indivíduo que aumenta o estresse ao pensar em aproximação social e se isola cada vez mais. Vamos ver alguns estudos sobre esse tipo de solitude.

A quarentena levou as pessoas ao afastamento de suas redes de apoio, relações familiares e de trabalho, sem contar com outros grupos como de práticas esportivas ou o grupo da cervejinha. O ser humano sem contato social acaba ficando mais propenso ao sentimento de solidão. E mesmo com a reabertura, ainda passaremos um bom tempo em distância “segura” uns dos outros para evitar a propagação do coronavírus. Assim, esse isolamento será prolongado ainda.

Solidão não faz bem para a saúde. Em estudo de meta análise com mais de 300 mil pessoas, a pesquisadora Holt-Lunstad validou a evidência de mais de cem estudos no tema. A quantidade e qualidade das relações sociais impactam não apenas a saúde mental, mas também na longevidade das pessoas. É um fator de risco independente para morbidade e mortalidade. Os cientistas concluíram que o impacto da solidão na saúde é equivalente ao do cigarro. Outro estudo revelou que a chance de ter um evento cardiovascular aumenta com a solidão e isolamento social.

A pílula para a solidão

Já que os efeitos estressores da solidão são deletérios para a saúde, como fazer para reverter ou mitigar a solidão?

Um dos grupos que estudam o tema está na Universidade de Chicago, liderado por John Cacioppo (falecido em 2018) e sua esposa Stephanie. Em um pequeno estudo, os cientistas identificaram um potencial composto para tratar a solidão. Recentemente, esse remédio foi aprovado pelo FDA como primeiro medicamento para depressão pós-parto. Trata-se de um neuroesteróide produzido pelo cérebro, a alopregnanolona, e que está desbalanceado em indivíduos em isolamento social. O estudo mostrou redução dos sintomas relacionados ao estresse do isolamento. O grupo de Cacioppo ampliou esse estudo, que está em fase clínica, e vê o efeito deste composto sobre a percepção do isolamento social.

Por outro lado, há grandes críticas da medicalização da vida, em que pílulas resolvem sintomas e doenças. Afinal, o problema da epidemia da solidão está intrincado com as mudanças sociais e de trabalho. 

Na direção contrária à medicalização, outros estudos de solidão indicaram que a forma crônica melhorava com aumento de relacionamento social, o que seria óbvio a não ser que se trata de pessoas com aversão a contato social.

O que os cientistas perceberam, entretanto, foi que quando essas pessoas cronicamente afetadas tinham um propósito maior do que seu autoisolamento e introspecção, elas conseguiam interagir com outras pessoas e ter as benesses de fazer parte de um grupo social. Esse propósito maior poderia ser por exemplo a preservação do meio ambiente, ou engajamento político, ou até mesmo o trabalho. 

Em tempos de pandemia, como sair do isolamento social, se sentir conectado e ao mesmo tempo não sair de casa? O tempo é de repensar várias relações, inclusive da família. Mas talvez um caminho esteja nesse propósito maior.

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Quais os riscos de perdermos a batalha contra o covid com a reabertura? http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/07/05/quais-os-riscos-de-perdermos-a-batalha-contra-o-covid-com-a-reabertura/ http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/07/05/quais-os-riscos-de-perdermos-a-batalha-contra-o-covid-com-a-reabertura/#respond Sun, 05 Jul 2020 07:00:14 +0000 http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/?p=1076

Robert Norton/ Unsplash

Em março o mundo todo parou devido ao covid. Em alguns países a doença já avançava sobre grande parte da população, em outros nem tanto. Alguns países implementaram medidas rígidas, com grande adesão da população, outros nem tanto. De uma maneira ou de outra, o ímpeto da doença arrefeceu, mas também vieram as conseqüências econômicas.

Nos países onde os números de casos chegaram a ser grandes, mas depois caíram com as medidas restritivas, ficou a sensação de dever cumprido e de que tudo valeu a pena. Em países onde a doença nem tinha chegado a se estabelecer, ficou uma certa sensação de perda de tempo. Em países onde as medidas mal surtiram efeito, como no Brasil, também. Nesse último mês de junho, seja lá qual tenha sido o resultado, a ordem é reabrir. Se por um lado já sabemos mais sobre a doença e podemos tomar decisões mais informadas, por outro já não há mais clima para reestabelecer quarentenas rígidas. E o número de casos, como se previa, infelizmente, vem aumentando.

A estratégia era clara: usar a quarentena para reduzir os casos a um número controlável, depois reabrir com cuidado e testar, rastrear e isolar. Caso o número de casos saia do controle, essa estratégia já não é mais possível. A Europa, de uma maneira geral, conseguiu fazer isso com sucesso. Os casos diminuíram durante a quarentena e não voltaram a subir com a reabertura. A Nova Zelândia chegou a eliminar a doença completamente. Porém, esses casos de sucesso deixaram uma falsa impressão de que esse é apenas o curso natural da doença, de que é só esperar que os números baixam por si só. Ledo engano.

Nos países onde se perdeu muito tempo discutindo os limites da atuação do Estado e a conveniência de se usar máscaras, os resultados foram bem menos impressionantes. Nos Estados Unidos os números chegaram a se estabilizar, mas não chegaram a diminuir. No Brasil nem isso. Agora com a abertura, os efeitos nos EUA foram imediatos, com novos focos da doença justamente nos estados onde a reabertura foi mais rápida. A diferença com a Europa é gritante.

Comparação dos números de casos de covid na União Europeia e nos EUA: a diferença entre uma quarentena bem feita e uma ineficaz

O que mudou com a quarentena

Hoje já temos uma ideia melhor de como o covid se espalhou no começo, quando não havia testes suficientes para se estabelecer números confiáveis. Analisando o excesso de doenças respiratórias em março em comparação com a média anual, cientistas estimaram que o número de casos nos EUA no período provavelmente chegaram a quase 9 milhões, 80 vezes maiores do que os reportados. Isso sugere que o vírus é mais perigoso pela transmissão rápida do que pela taxa de mortalidade.

Em outro estudo preocupante, cientistas chineses estudaram pacientes assintomáticos de covid e descobriram que em muitos casos a imunidade à doença dura apenas alguns meses. Quando a resposta imunológica ao covid é fraca, e o paciente nem chega a desenvolver sintomas, os anticorpos gerados na resposta tendem a desaparecer depois que o paciente se recupera. 40% dos pacientes assintomáticos analisados testaram negativo para anticorpos dentro de dois meses. Esse resultado diminui a esperança de atingirmos a chamada imunidade de rebanho antes de desenvolver uma vacina.

Durante a reabertura o perfil dos pacientes de covid mudou, com uma porcentagem muito maior de jovens infectados. Talvez porque a população mais velha esteja mais protegida, talvez porque os mais jovens tenham sido os primeiros a frequentar restaurantes, ou simplesmente porque estamos testando melhor. Mas uma coisa é certa: a doença ainda está aqui, e está se espalhando rapidamente por uma população ainda desprotegida.

Esforços de reabertura

Na pressa de reabrir, botar o carro na frente dos bois pode prejudicar ainda mais a economia. Entrar num ciclo de abertura e fechamento pode ser catastrófico. Um restaurante que permanece fechado com certeza perde muito dinheiro, mas é muito pior recontratar funcionários, reabastecer os estoques, botar a casa em dia para funcionar por duas semanas e voltar a fechar.

A Universidade da Califórnia em San Diego, por exemplo, desenvolveu uma estratégia arrojada de reabertura. Vão reabrir completamente no novo ano letivo, depois do verão no hemisfério norte, trazendo 65 mil pessoas ao campus entre alunos e funcionários. Desenvolveram também laboratórios próprios e toda a infraestrutura necessária para testar toda essa gente mensalmente, ao custo de US$ 2 milhões ao mês. O plano é isolar os casos imediatamente e controlar os focos da doença. Porém, a nova realidade da Califórnia pode por tudo a perder. Com a doença saindo de controle, um novo fechamento pode ser inevitável.

Moral da história: não há milagres. Cada um deve fazer a sua parte e cooperar com as medidas para baixar os números. Depois disso, é preciso manter a vigilância e investir na infraestrutura para identificar novos focos. E é indispensável a participação de toda a sociedade. Controlar a doença é possível, e as histórias de sucesso estão aí para servirem de exemplo. Os maus exemplos, idem.

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“Pense nos outros”: tecnologia e pandemia mudam o comportamento dos médicos http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/06/07/pense-nos-outros-tecnologia-e-pandemia-mudam-o-comportamento-dos-medicos/ http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/2020/06/07/pense-nos-outros-tecnologia-e-pandemia-mudam-o-comportamento-dos-medicos/#respond Sun, 07 Jun 2020 07:00:35 +0000 http://paraondeomundovai.blogosfera.uol.com.br/?p=1058

Zach Vessels/ Unsplash

O homem disse que tinha de ir embora – antes queria me ensinar uma coisa muito importante:

– Você quer conhecer o segredo de ser um menino feliz para o resto de sua vida?

– Quero – respondi.

O segredo se resume em três palavras, que ele pronunciou com intensidade, mãos nos meus ombros e olhos nos meus olhos:

– Pense nos outros.

“O menino no espelho” – Fernando Sabino

Por Paulo Schor*

Uma das categorias profissionais mais convencionais e de mudança comportamental mais lenta se move a passos de gigante: os médicos.

Durante décadas as questões éticas conviveram com o mercado e a demanda da população na área da saúde. Associações de defesa de classe, de pacientes, de proprietários de clínicas etc. não se entenderam pois os interesses em comum nem sempre foram explicitados.

Como compatibilizar o lucro a partir de internações e exames, com o acesso universal a serviços de saúde? Ou montar estruturas de atendimento antes de haver demanda efetiva e retorno financeiro privado?

A tecnologia (e aspectos econômicos, como a inflação médica) vinha promovendo a mudança, e tínhamos a esperança da antecipação de novos comportamentos, que beneficiariam os pacientes, como a medicina baseada em valor, a promoção do bem-estar e o empoderamento dos pacientes pela tecnologia frugal.

O vírus deu um impulso em tudo. Um mal maior e um tempo muito menor se colocaram à frente de detalhes que antes tomavam a cena. E a atenuação do sofrimento (e em última instância a luta contra a morte) retomou seu lugar central no cuidado com o próximo.

Uma das discussões que mais rapidamente se resolveu foi a da telemedicina, que entre vais e vens, tinha sido engavetada para estudos mais aprofundados. Agora, ela ressurge com inúmeras faces, desde a certificação digital de profissionais, que hoje assinam receitas de medicamentos controlados e enviam ao celular dos pacientes, até plataformas institucionais gratuitas que gravam e compartilham informações com sigilo e qualidade.

Hoje treinamos acadêmicos e residentes para lidar com telas. Como interpretar a fala dos pacientes, emoção que traz ao médico experiente inúmeras informações da história clínica? Resgatamos a história! Rica o suficiente para permitir um encaminhamento e hipóteses robustas na maioria das vezes.

O antigo hábito de pedir inúmeros exames complementares e depois aprofundar os diagnósticos é questionado. Retornamos a mais pura origem da prática médica, a escuta. Revalorizamos o raciocínio clínico, investigativo, crítico e científico.

Participei de várias experiências de atendimento a distância, desde o acompanhamento de autoexames (como o EyeNetra), passando por laudos de teleoftalmologia, a orientação de refração –exame de óculos– remoto. Recentemente integrei a força-tarefa que iniciou consultas de orientação a pacientes pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia, e hoje utilizo plataformas institucionais para meus pacientes.

O custo direto dessas tecnologias é baixo se comparado ao custo fixo envolvido em atendimentos presenciais. Há o custo de treinamento, as redes de dados limitadas nas pontas, a instabilidade dos sistemas e o entendimento do funcionamento das plataformas, nem sempre, mas cada vez mais amigáveis.

Testemunho –e já publicamos artigos sobre– a efetividade das práticas mediadas por tecnologia. Os pacientes que são atingidos e têm sua angústia minorada traduzem qualitativamente esses dados.

Empresas investem em mais ferramentas que analisam expressões durante encontros virtuais, permitindo aos mais novos a interpretação mais rápida e precisa dos sentimentos alheios. Algoritmos procuram padrões em imagens e evitam prescrições de receitas com erros grosseiros, que nós, humanos, estamos sujeitos a cometer. A utilização da máquina, como interface com o humano, hoje é essencial e quem sabe salvadora.

Enxergo aqui uma oportunidade imensa de resgate de uma joia nacional, voltada à população que mais precisa: o SUS.

Essa enorme inovação em políticas públicas originária do Brasil chamada Sistema Único de Saúde nunca pode ser implementada na sua totalidade, também por inexistência de recursos suficientes. Apesar dos preceitos detalhados, a formação médica era (e ainda é) direcionada para a medicina reparadora, e não preventiva. Os egressos ainda procuram plantões de especialidades e se agrupam em clínicas de especialidades, tendo o sonho de “só atender paciente particular” um dia.

O modelo de remuneração de médicos e hospitais a partir do pagamento de clientes para planos de saúde, que por um lado lucram mais quanto menor for a dita sinistralidade (procura por atendimento) e por outro mais ganham quanto mais internações e procedimentos houver, não fecha.

No contexto atual da pandemia, com detalhes abafados por fatos catastróficos, podemos pensar em passos mais largos. Vemos a óbvia ação e necessidade estatal na redução de desigualdades, e o SUS traz isso no conceito central de equidade. Somamos a isso ferramentas centradas no usuário, direcionadas para essa necessidade, que remetem ao conceito de integralidade, e concluímos com um modelo de sustentabilidade presente na universalização do cuidado.

Todos os requisitos estão hoje colocados na mesa e vigorosamente validados. Profissionais experientes e em formação agora podem trabalhar de inúmeros locais em tempos variados, aumentando exponencialmente a produtividade e acessibilidade.

Temos como, podemos e devemos pensar nos outros!

* Paulo Schor é médico e professor livre-docente de oftalmologia na Escola Paulista de Medicina e Einstein; e diretor de inovação tecnológica e social da Unifesp.

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