Topo

Para onde o mundo vai

Como rodízio de dias de trabalho pode salvar vidas e empregos na pandemia

Daniel Schultz

28/05/2020 04h00

Semana passada assisti a uma palestra de Kristian Andersen, pesquisador do Scripps Institute na California, especialista em estudos genômicos de pandemias. Na opinião dele só nos livraremos do covid-19 quando atingirmos a imunidade de rebanho, e só existem duas maneiras para isso: vacinação em massa ou expor a população à doença, resultando em milhões e milhões de mortes.

Ainda na opinião dele, a vacina deve sair em mais ou menos quatro anos. Talvez saia antes, e muito progresso tem sido feito nessa direção, mas não podemos e não devemos contar com isso. De qualquer maneira, não seria prudente injetar em 5 bilhões de pessoas uma vacina que não tenha sido corretamente testada, e testes levam tempo. É uma analise um tanto fria e realista demais para todos que sonham com uma volta rápida ao mundo como ele era antes. Mas então o que fazer?

A esse ponto da pandemia já experimentamos tanto o peso da doença quanto o peso da quarentena. Nos isolamos em nossas casas e vimos o ímpeto da doença arrefecer ao redor do mundo (nem tanto no Brasil…) ao mesmo tempo que os negócios foram falindo. Com toda a razão, o momento agora é de reabertura. Mas aí vem o dilema: e se o vírus voltar com tudo?

Se com a reabertura os casos de covid-19 voltarem a crescer exponencialmente corremos o risco de voltar às quarentenas restritivas, e continuar nesse ciclo seria catastrófico. Ainda mais que mesmo nos lugares mais atingidos o número estimado de infectados não passou de 15%, o que significa que ainda estamos longe da imunidade de rebanho. Como então devemos planejar a abertura para minimizar esse risco?

Não há solução mágica, e algumas respostas já conhecemos. Mas também há propostas alternativas muito interessantes que vêm ganhando corpo.

O feijão com arroz

Seja lá qual for a estratégia de reabertura, ela deve ser gradual e deve incluir medidas de distanciamento social. Provavelmente cada passo vai ser acompanhado de um aumento no número de casos, mas devemos tentar manter um número baixo o suficiente para permitir o monitoramento constante.

Assim como já vem sendo feito com algum (discutível) sucesso na Suécia, deveremos trabalhar de casa desde que possível, evitar viagens desnecessárias, manter escolas abertas mas universidades ainda fechadas, proibir aglomerações, reduzir a capacidade de restaurantes e proteger a população idosa. Tudo isso com muita máscara, luva e mãos lavadas. Isso é o básico, e vamos precisar nos acostumarmos com essa realidade por um certo tempo.

Tudo isso reduz a velocidade com que o vírus se espalha, mas ainda não garante a eliminação da doença. Adotando essas medidas podemos arrastar a epidemia por um tempo mais longo, o que em si já salvaria muitas vidas por não sobrecarregar o sistema de saúde. Mas conseguiríamos com isso uma redução significativa no número final de mortos. O ideal seria alguma estratégia que conseguisse reabrir a economia e ao mesmo tempo reduzir o contágio do vírus ao ponto da epidemia retroceder. Pesquisadores de Israel desenvolveram uma ideia interessante nesse sentido.

Explorando o período de latência do vírus

Nesses meses desde o começo da epidemia, já aprendemos muito sobre o vírus. Já sabemos, por exemplo, que o ciclo dele durante a invasão do corpo humano passa por um período de latência de três a quatro dias depois do primeiro contato. Durante esse período, enquanto a infecção se estabelece, o portador ainda não é contagioso. Já sabemos também que, dentro de um período de duas semanas, o portador já deve começar a apresentar os primeiros sintomas. Baseados nesses fatos, os pesquisadores israelenses propuseram um modelo bi-semanal que alterna quatro dias de trabalho com dez de quarentena.

Nesse modelo, se trabalharia de segunda a quarta, semana sim e semana não, alterando quatro dias de trabalho com 10 de quarentena. Assim, mesmo se alguém se infectasse durante o trabalho, não infectaria mais ninguém no mesmo período. E apresentaria sintomas em casa, durante o período de quarentena, a tempo de evitar voltar ao trabalho doente. Estudos sobre esse modelo mostram que o contágio se reduziria a ponto de acabar com a epidemia (obviamente, se a população realmente aderisse).

Segundo esse modelo, a sociedade se dividiria em dois grupos que se alternariam nos locais de trabalho, o que os manteria funcionando continuamente. A população poderia se organizar de maneira que famílias fossem sincronizadas, com as crianças na escola enquanto os pais estão no trabalho. Ao mesmo tempo, esse modelo automaticamente garantiria ocupação reduzida nos locais de trabalho, ajudando no processo. Assim, conseguiríamos arrefecer a epidemia evitando voltas à quarentena completa, e o método funcionaria mesmo se o numero de casos excedesse a nossa capacidade de realizar testes em massa.

Esse método é compatível com todas as outras medidas discutidas, que podem e devem ser adotadas em conjunto. Ele é aplicável em qualquer escala, podendo ser adotado numa empresa, cidade ou estado. Uma região que adote essas medidas ainda estaria protegida de infecções vidas de fora, já que o número de casos diminui com o tempo. Com o passar do tempo, caso as coisas evoluam bem, dias adicionais de trabalho podem ser incluídos. Caso contrário, podem ser reduzidos.

É importante não retroceder

Obviamente, esse método deve ser acompanhado de medidas de distanciamento e deve ser parte de uma estratégia abrangente envolvendo todas as outras medidas discutidas acima. Devemos procurar meios de manter atividade econômica sustentável durante a reabertura, salvando vidas e também empregos. É importante agir com inteligência, usando o que se sabe sobre a dinâmica do vírus, para que possamos voltar à normalidade o mais rápido possível mesmo sem depender de milagres.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.