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Cloroquina causa efeitos colaterais graves; veja o que a ciência já sabe

Shridhar Jayanthi

09/04/2020 04h00

Torsade de Pointes, um dos efeitos colaterais possíveis da cloroquina (Wikimedia Commons)

A correria sanitária que tomou conta do mundo nesses tempos de covid-19 também envolve a busca por terapias, tratamentos, profiláticos, enfim, a busca por remédios que curem o coronavírus. Esse ritmo acelerado está descompassado com o processo normal da indústria farmacêutica, onde um medicamento pode levar mais de 10 anos para ser desenvolvido a partir de sua descoberta. Essa lentidão é reflexo dos riscos envolvidos ao dar um remédio experimental a pacientes, não é só burocracia. Mas a pandemia está tomando conta do mundo de forma intempestiva e todos estamos vendo a necessidade de se pisar no acelerador.

A história da cloroquina ilustra bem esse momento (nesse texto eu vou usar "cloroquina" como termo genérico para drogas dessa mesma classe, o que inclui hidroxicloroquina e outras quinilonas). Com a urgência e o impacto econômico causado pela doença é natural que se deseje ou que se queira acreditar em uma cura milagrosa, daquelas hollywoodianas. A crença na cloroquina virou até foco de disputa política, algo um pouco curioso mas não sem precedentes (veja os casos da maconha, Narcan, HIV). E, como corriqueiro no dia de hoje, há até fake news dizendo que estão proibindo a cloroquina para atravancar a economia de propósito e instaurar a revolução comunista, facilitar a dominação mundial pela China ou garantir lucros da indústria farmacêutica uma vez que a cloroquina é de uso público livre. Então vamos olhar para cloroquina como caso de estudo.

A cloroquina é um remédio utilizado, primariamente, no tratamento e prevenção de malárias. O remédio é bem velho – descoberto na década de 1930 – e não está coberto por patentes. Sua popularidade e distribuição é altíssima e o medicamento está na lista de medicamentos essenciais da OMS.  O uso da cloroquina na década de 50-60 foi tão amplo que algumas cepas que causam malária desenvolveram resistência à cloroquina. Um outro problema da cloroquina? Ele pode causar efeitos colaterais graves, como distúrbios psicológicos e arritmia cardíaca.

A malária, ao contrário da covid-19, é causada por um protozoário, um organismo unicelular muito diferente de um vírus. De onde tiraram, então, a ideia de usar cloroquina para matar um vírus? O primeiro artigo que eu achei especulando o uso de cloroquina como terapia para o coronavírus é de um grupo italiano em 2003. Naquele artigo, os autores apontam o efeito anti-inflamatório e antirretroviral (nos anos 90, a cloroquina foi um candidato para terapia contra HIV) da cloroquina como motivadores para experimentação contra o coronavírus causador do SARS de 2002. Em 2006, o mesmo grupo reportou uma série de ensaios apontando a eficácia da cloroquina in vitro.

Ao longo dos últimos 20 anos, a cloroquina foi sugerida como terapia antiviral para várias doenças, incluindo gripe "normal" causada por influenza, chikunguya, dengue, e até ebola. Apesar de virtualmente todos os estudos mostrarem que a cloroquina é eficaz contra o vírus in vitro, ela ainda não demonstrou eficácia significativa em pacientes para nenhuma dessas doenças. Como dito lá em cima, remédios levam tempo para serem desenvolvidos. É importante frisar a palavra "ainda" na frase anterior, pois é bem possível que com o coronavírus que causa a covid-19 seja diferente. Às vezes, conseguir fazer um remédio funcionar ou não é questão de pura sorte.

Outra palavra importante de se frisar naquela frase é "significativa". Se você procurar por aí, vai ouvir histórias e ler estudos de caso onde a cloroquina causou uma cura aparentemente milagrosa em pacientes. E é bem possível que há um fundo de verdade. Quando eu vejo a disparidade entre o resultado obtido in vitro e o obtido in vivo, e embasado nos mecanismos de ação antiviral sugeridos pela literatura, minha intuição diz que é possível sim que há um tipo de paciente que responde muito bem à cloroquina. Mas isso é minha intuição dizendo que é possível. Se você achar um médico (ou pior, um ministro da saúde ou um diretor de agência sanitária) que receitar um paciente baseado na intuição especulativa do Shridhar, troque de médico por favor, ainda mais em se tratando de um remédio com efeitos colaterais que exigem acompanhamento médico. É preciso saber muito mais do que "a opinião de um cara na internet." Por cautela, é importante ter dados mais sólidos.

É por isso que, apesar de todas as fakenews, tanto a OMS quanto o Ministério da Saúde brasileiro estão encorajando sim estudos com a cloroquina. Este artigo dá uma boa ideia da intensidade de experimentação com a cloroquina. Esses estudos começaram já no final do ano passado e entraram em ritmo forte no começo deste ano. E eles não estão testando apenas a cloroquina. Estão testando antivirais específicos, esteroides, anti-hipertensivos… enfim, estão testando uma variedade de medicamentos para ver se algo funciona. O momento agora é de achar algum remédio que funcione.

Funcionar pode significar curar e pode também significar prevenir. Além de estudos usando a cloroquina no tratamento de pacientes infectados, há também estudos investigando a possibilidade de se utilizar cloroquina de uma forma profilática. Nesse tipo de análise, os dilemas de custo-benefício ficam mais evidentes. É razoável dar a uma pessoa um remédio com efeitos colaterais potencialmente graves, como a cloroquina, quando essa pessoa sequer tem a doença? Aqui entra a questão da exposição.

A conta fica fácil para profissionais da saúde cuidando de pacientes com covid-19, pois a exposição contínua ao vírus faz deles uma população em risco. Mas essa conta é mais complicada para pessoas em serviços essenciais, que seguem trabalhando e se expondo ao coronavírus, mas o nível de exposição talvez não seja tão elevado para compensar os riscos do efeito colateral. Dito de outra forma, mesmo se a cloroquina for eficaz como profilático, isso não significa que a solução é cessar as quarentenas para abrir a economia e dar cloroquina para todo mundo. O uso indiscriminado de um medicamento com efeitos colaterais também tem um custo humano.

A partir do que está escrito aí, dá para ver a complexidades da adoção pública de medicamentos ainda não comprovados e as questões éticas ligadas ao uso compassivo ou emergencial de medicamentos. A questão fica mais complicada se considerarmos que o uso de um medicamento moderadamente eficaz pode impedir, por questões práticas, a experimentação com medicamentos de potencial maior.

Diante dos riscos envolvidos, diante da particularidade de cada paciente e do conforto e conhecimento de cada médico e diante da imensidão de variáveis desconhecidas, essa deve ser uma decisão feita pelo paciente depois de aconselhamento com seu médico. E o contexto econômico e educacional do paciente é um aspecto importante nessa decisão e no aconselhamento. A situação é dinâmica e complexa, mas é importante lembrar que o indivíduo é tão importante quanto o coletivo.

 

 

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.