Topo

Para onde o mundo vai

Até quando precisamos da quarentena para enfrentar o coronavírus?

Daniel Schultz

28/03/2020 04h00

Freepik

Como vão de quarentena? Eu mesmo estou aqui no sofá do nosso pequeno apartamento, com a filha pequena brincando, enquanto tento me acostumar com as reuniões no Zoom e a reescrever aulas em formato de YouTube. O laboratório está fechado, com todos os experimentos adiados indefinidamente, enquanto os prazos ainda permanecem. Não sei como a universidade vai lidar com a crise mais tarde, mas pelo menos por agora posso me dar ao luxo de ficar em casa e não contribuir com a disseminação do coronavírus. A quarentena mexe profundamente com a sociedade, e realmente parece anti-intuitivo impô-la após apenas algumas centenas de casos confirmados. Mas afinal, a quarentena é mesmo necessária? Como sair dela?

A razão do medo é o crescimento exponencial do número de casos. Como temos visto diariamente, a epidemia começa dessa mesma forma em todos os países, independentemente do método utilizado para medir o número de infectados. Além disso, como testamos apenas uma pequena parcela das pessoas infectadas, sabemos que os números são na realidade muito maiores que os oficiais.

E mais, como o período de incubação do covid-19 é de aproximadamente duas semanas, nas quais a doença já é transmissível, os números de casos positivos que vemos hoje, obtidos de pacientes testados já apresentando sintomas, na realidade correspondem ao número de infecções contraídas duas semanas atrás. Isso significa que qualquer ação tomada hoje demorará duas semanas para ser refletida nos números oficiais, que continuarão a crescer exponencialmente nesse período, à medida que as pessoas já infectadas começarem a apresentar os sintomas da doença.

Nesse cenário, a quarentena é inevitável?

Na realidade não. Mas infelizmente para nós, isso dependia de muito preparo feito antecipadamente. Vários países asiáticos aprenderam essa lição com outro coronavírus, o SARS de 2003. No mesmo dia em que uma pneumonia de causa desconhecida foi identificada em Wuhan, agentes de saúde de Taiwan voaram para a China para impedir a viagem de qualquer passageiro apresentando sintomas.

Conforme se aprendeu na Ásia, a formula é testar, rastrear e isolar. A própria China, depois do desastre em Wuhan, mobilizou 1800 times de cinco pessoas para identificar e isolar todos os contatos de pessoas infectadas. Dessa maneira, agindo rapidamente com medidas agressivas, Taiwan, Hong Kong, Cingapura, Tailândia, Japão e até mesmo as demais regiões da China conseguiram conter o avanço da doença sem necessitar da quarentena. Nós já perdemos essa chance.

A Coreia do Sul também começou bem, e a epidemia parecia sob controle. Até que apareceu a paciente 31. Essa paciente, apesar de apresentar febre alta, ignorou a recomendação de ser testada em duas visitas ao hospital em Daegu, e em vez disso frequentou ativamente os cultos de sua igreja. Esse descuido resultou em mais de cinco mil casos na igreja de Shincheonenji, e a epidemia na Coreia saiu do controle.

Agora, a solução é mitigar

Quando a epidemia chega a esse ponto, não é mais possível identificar todos os casos com antecedência. E a taxa de transmissão do covid-19 é especialmente alta, o que significa que se nada for feito, uma parcela significativa da população contrairá a doença num curto espaço de tempo. Apesar de a mortalidade do vírus não ser tão alta, muitos casos precisam de internação. E de acordo com dados de outros países, a taxa de mortalidade da doença depende majoritariamente na capacidade do sistema de saúde local de tratar os casos mais graves. Além disso, quanto mais pessoas contraírem o vírus, maior a probabilidade de ele contrair mutações, se diferenciando em várias cepas e dificultando a criação de uma vacina.

O que resta a fazer é tentar reduzir a taxa de transmissão do vírus pelo distanciamento social. A taxa de transmissão assume que as pessoas infectadas estão em contato constante com as pessoas suscetíveis. Reduzindo esse contato, reduzimos drasticamente o avanço a doença. Além disso, ao se restringir viagens mais longas, permitimos que regiões menos afetadas consigam controlar a epidemia antes que o fluxo de pessoas infectadas ponha tudo a perder.

Essas medidas já foram testadas durante a pandemia de gripe espanhola (que na realidade veio dos EUA, segundo estudos) em 1918.  Essa epidemia infectou quase um terço da população mundial, com uma mortalidade que chegava a 10%. Algumas cidades agiram rapidamente e impuseram quarentenas, enquanto outras ignoraram o perigo até que ele se tornou óbvio. Em média, a cada 20 dias de atraso em se impor a quarentena se registraram o dobro de mortes. Algumas cidades até agiram rapidamente e controlaram a epidemia, mas depois relaxaram as medidas, resultando num segundo pico de infecções.

Portanto, é necessário ter um pouco de paciência. Os resultados da quarentena demorarão duas semanas para aparecer, e quando finalmente a epidemia parecer controlada o perigo ainda pode não ter acabado.

Até quando deve durar a quarentena?

Essa é uma pergunta complicada. Se as medidas forem relaxadas de uma vez, sem estarmos preparados, voltamos à situação inicial de crescimento exponencial da doença. Infelizmente, o desenvolvimento de vacinas e drogas para o tratamento da doença é um processo demorado.

Ainda que tenhamos opções promissoras sendo investigadas, e apesar de toda a urgência, o uso de soluções ainda não testadas é uma ideia péssima. É muito difícil atacar um vírus diretamente, já que vivem dentro de nossas células, e em muitos casos os remédios trazem mais problemas que benefícios. Geralmente, várias opções são testadas até que se encontre uma cura segura e eficaz.

Vários países estão pensando em estratégias diferentes. Ao contrário do SARS, que foi completamente eliminado em 2004, provavelmente nós teremos que conviver com o covid-19 no futuro. Mesmo pessoas que já contraíram a doença aparentemente não permanecem imunizadas indefinidamente. Uma alternativa que vem sendo considerada é uma liberação gradual começando pelos grupos de menor risco, como crianças e adultos jovens, o que diminuiria a sobrecarga no sistema de saúde.

De qualquer maneira, o momento é de planejar a abertura e fortalecer o contingente hospitalar. E de nos darmos conta de que o fim da quarentena não vai ser repentino e vai depender de mantermos as várias outras medidas de distanciamento social e desinfecção. Várias das mudanças sociais trazidas pelo vírus provavelmente vieram para ficar. Certamente da próxima vez já não vamos acompanhar uma epidemia na China por dois meses antes de tomar qualquer atitude.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.