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Tecnologia de CRISPR pode substituir os antibióticos

Daniel Schultz

14/11/2019 04h00

Crédito: iStock

Nos últimos 80 anos temos tratado nossas infecções com antibióticos, compostos químicos que atacam bactérias indiscriminadamente, sejam boas ou más. Cientistas canadenses da Western University publicaram mês passado um resultado interessante, que pode ser um marco na luta contra as bactérias resistentes a antibióticos: conseguiram modificar microorganismos benéficos da nossa flora intestinal para que eliminem bactérias patogênicas.

Para isso, se utilizaram apenas da troca natural de material genético. É algo comum entre as bactérias, sem necessitar de droga nenhuma. Além disso, esse método permite eliminar apenas espécies específicas de bactérias ou até mesmo vírus, sem interferir na comunidade complexa de microorganismos que são essenciais para o nosso organismo.

A ideia de interferir nas disputas naturais entre bactérias é antiga. Antes mesmo dos antibióticos, nos anos 1890, o britânico Ernest Hankin estava estudando as propriedades curativas das águas do rio Ganges, na Índia. Esse rio tem grande significado religioso e é habitado por muitas comunidades ribeirinhas que nele se banham, assim como nele despejam seus esgotos e seus cadáveres.

Com efeito, quando adicionada a culturas de bactérias, a água do rio Ganges conseguia eliminá-las. Vinte anos foram necessários para se descobrir o motivo. As águas eram tão contaminadas com as bactérias comuns ao organismo humano que se transformaram num imenso criadouro de outro tipo de micróbio: os bacteriófagos (fagos), vírus que atacam apenas bactérias.

Na época, essa descoberta gerou muito interesse na utilização desses vírus no tratamento de infecções. Aliás, esse interesse sempre persistiu no leste europeu, atrás da Cortina de Ferro, e fagos ainda são utilizados comumente na Geórgia. Porém, cada fago age apenas contra uma espécie específica de bactéria, um problema quando não se consegue identificar a espécie causadora de uma infecção.

Assim, era necessário desenvolver coquetéis de fagos para serem prescritos contra infecções genéricas. No resto do mundo, o interesse em fagos diminuiu com a descoberta dos antibióticos, que agiam indiscriminadamente e resolviam esse problema.

Foi uma receita de sucesso por quase um século, mas hoje está atingindo seus limites. Assim como os fagos, os antibióticos são compostos químicos que fazem parte das complexas disputas e interações entre micróbios, evoluídas ao longo de bilhões de anos. Ao contrário do nosso genoma, que deve ser mantido muito organizado para o nosso desenvolvimento e reprodução sexuada, o genoma de bactérias é muito mais maleável. Bactérias rotineiramente adquirem e se livram de material genético conforme as pressões do ambiente em que vivem.

Assim, ao contrário do nosso caso, onde a importação de material genético externo (como um vírus) geralmente é maléfica, em bactérias ela pode ser bem vinda. É como um "vírus do bem", que traz à bactéria algum benefício e é mantido por ela.

Um exemplo comum são plasmídeos (um tipo de material genético transmissível) que conferem à bactéria a capacidade de produzir toxinas, tornando-a patogênica. Outro exemplo são plasmídeos que trazem à bactéria enzimas capazes de eliminar antibióticos. Com o uso indiscriminado destes remédios, esses plasmídeos se espalham pelas populações de bactérias e causam os problemas de resistência que enfrentamos hoje em dia.

Para atacar as bactérias patogênicas sem utilizar antibióticos, os cientistas canadenses lançaram mão justamente de um plasmídeo altamente transmissível aliado a outra tecnologia recente: o CRISPR. Essa tecnologia utiliza uma enzima teleguiada para cortar DNA em sequências específicas. É só fornecer um exemplo do DNA a ser cortado, que a enzima o persegue e destrói ao redor da célula. Apesar de o CRISPR ter sido descoberto justamente como um tipo de "sistema imunológico" das bactérias, ele tem sido utilizado mais como uma ferramenta de edição genética em outros tipos de organismo. Nesse estudo, os cientistas o utilizaram de uma maneira próxima à sua função original.

Eles desenvolveram um plasmídeo que contêm a enzima do CRISPR e um exemplo de DNA da bactéria patogênica salmonela. Esse plasmídeo vive normalmente sem causar problemas em outra bactéria, a E. coli, que é normalmente encontrada na nossa flora intestinal. Quando essas duas bactérias estão em contato, o plasmídeo é transferido à salmonela, onde começa a destruir o DNA, matando a célula. Cultivando as duas bactérias juntas, os cientistas observaram a eliminação completa da salmonela, deixando a E. coli intacta. Utilizando um método semelhante, cientistas do Instituto Broad conseguiram também eliminar vários tipos de vírus humanos, incluindo o da gripe.

Esses métodos, próximos da ideia original de utilizar vírus contra bactérias, mas aliados a novas tecnologias recentes, trazem muitos benefícios. Eles podem ser facilmente alterados para eliminar qualquer espécie de bactéria ou vírus, bastando apenas fornecer um exemplo do DNA a ser atacado. Além disso, esses métodos são superiores aos antibióticos por atacarem apenas espécies patogênicas específicas. Deixando intacto o resto do microbioma, evitam os severos efeitos colaterais resultantes da perda das espécies benéficas.

Porém, como no caso das terapias de fagos, o desenvolvimento de tratamentos contra espécies específicas depende de diagnósticos rápidos. Felizmente, com o desenvolvimento das técnicas de sequenciamento, esse é outro campo que vem avançando rapidamente. Essas tratamentos ainda estão um pouco distantes das farmácias, mas já estão chegando perto do ponto onde poderemos começar os testes clínicos. Logo mais, deixaremos de bombardear as bactérias de nosso organismo com compostos químicos problemáticos, passando a uma fase de operações especiais alvejando apenas os elementos nocivos dessa comunidade.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.