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Para onde o mundo vai

A bioprospecção pode salvar a floresta amazônica

Daniel Schultz

29/08/2019 04h00

Vista aérea de área desmatada na Amazônia, nos arredores de Humaitá (AM). Crédito: Ueslei Marcelino/Reuters

Pois bem, as proteções ambientais relaxaram e os incêndios na Amazônia voltaram a aumentar. Esperemos que todo o estardalhaço ao menos sirva para evitar que voltemos aos níveis frenéticos de desmatamento do passado. Mas mais importante, que se traga à tona a velha discussão sobre a busca de um modelo sustentável de gestão da Amazônia.

Mais do que o que temos a perder (aquecimento global e a desertificação de boa parte do nosso interior, por exemplo), é importante entender as possibilidades do que a floresta pode nos oferecer, e como podemos tirar proveito de toda a biodiversidade das matas tropicais.

Atualmente, há um ressurgimento no interesse pela busca de compostos químicos naturais com potencial medicinal, o que pode atrair a indústria farmacêutica a participar do modelo de preservação. Técnicas modernas tornaram essa busca muito mais eficiente, aumentando as chances de que encontremos compostos que possam servir a dupla função de curar doenças e salvar a floresta.

Agulhas num palheiro

Mais da metade dos remédios que usamos hoje em dia são derivados de plantas, animais ou microorganismos. A química que ocorre dentro de nossas células é muito parecida com a de outros seres vivos, e bilhões de anos de evolução foram muito mais eficientes em explorar todas essas interações químicas do que conseguimos fazer em nossos laboratórios. Ainda assim, menos de 5% das espécies de plantas tropicais foram sistematicamente estudadas e estimativas sugerem que 140 dessas espécies são extintas todos os dias.

O problema é que apesar do interesse por compostos naturais ser antigo, o processo de encontrar novas espécies e estudá-las nos laboratórios é lento, e o número de espécies é imenso. Muitas vezes as moléculas mais interessantes só são produzidas pela planta quando são estimuladas por algum fator ambiental. Outras vezes o princípio ativo depende da interação entre vários compostos presentes no extrato da planta. Considerando os sete milhões de quilômetros quadrados da Amazônia, é como tentar encontrar uma agulha num palheiro.

Apesar de todo o nosso conhecimento científico, a busca por novos remédios ainda é um processo majoritariamente empírico, baseado na tentativa e erro. Basicamente, empresas farmacêuticas se valem de "bibliotecas" de milhões de compostos químicos catalogados para conduzir testes em massa que possam apontar moléculas candidatas a prosseguir aos testes clínicos.

Assim, essa busca depende de bibliotecas cada vez maiores e completas, e qualquer informação que possa reduzir o número de compostos a serem testados é bem-vinda (daí a importância de se entender os mecanismos das doenças, usar a química computacional, etc.).

Encontrando compostos naturais

O interesse em compostos químicos naturais é antigo. A casca do Salgueiro-branco, por exemplo, já era usada desde a Grécia antiga para tratar de febres e dores de cabeça. Até que em 1853 Charles Gerhardt isolou o ácido acetil-salicílico, que foi posteriormente estudado pela Bayer e vendido mundialmente 50 anos depois com o nome de Aspirina.

A morfina extraída do ópio no século XIX é tida como o primeiro composto bioativo a ser extraído de uma planta, e logo depois o quinino, extraído da Cinchona sul-americana, também começou a ser usado no tratamento da malária. Mais recentemente, o Instituto Nacional do Câncer americano financiou um estudo das plantas das florestas de lá e descobriu o Taxol, muito usado em quimioterapias.

Nos anos 90, na tentativa de encontrar as plantas amazônicas mais promissoras, a Shaman Pharmaceuticals ficou famosa por sua estratégia de consultar os pajés de comunidades indígenas. Esse tipo de estratégia levou ao desenvolvimento do Timpilo, usado para tratar o glaucoma, baseado em remédios indígenas extraídos do Jaborandi.

Mas apesar de vários sucessos, o ritmo lento da busca por compostos naturais não conseguiu acompanhar o ritmo de crescimento da indústria farmacêutica. A atenção das grandes companhias se voltou então a uma tecnologia nascente, considerada à época mais promissora: a geração de bibliotecas de compostos químicos artificiais pela química combinatorial. Ao invés de extrair os compostos de um extrato vegetal um a um, esse processo gera milhões de compostos diferentes a partir dos compostos já existentes, que podem então serem testados em grande escala por processos automatizados.

Ressurgimento do interesse na bioprospecção

Com o passar do tempo, a química combinatorial também começou a mostrar suas limitações. O método se mostrou muito bom em cobrir o espaço químico entre as moléculas já conhecidas, mas é incapaz de descobrir compostos realmente inovadores, com estruturas químicas diferentes.

A atenção da indústria farmacêutica então voltou à floresta, encorajada pelo desenvolvimento de diversas técnicas que permitem catalogar compostos desconhecidos de maneira eficiente. As técnicas de metabolômica, que integram espectroscopia e cromatografia, conseguem separar e perceber detalhes químicos (fingerprinting) dos milhares de compostos numa amostra.

Outros estudos conseguem identificar todas as possíveis interações desses compostos com as proteínas das células, quando misturados com extratos celulares. Esses estudos geram uma grande quantidade de dados, que podem ser analisados com algoritmos de aprendizado de máquina para identificar moléculas promissoras.

Essas técnicas podem finalmente transformar a Amazônia no Eldorado farmacêutico. O Brasil, que além de controlar a maior parte da floresta dispõe das instituições científicas e do capital necessário, está numa posição privilegiada para liderar esse processo. Mas ainda esbarra em vários problemas de incentivos e burocracia.

Dificuldades no transporte de amostras requerem uma certa infraestrutura local, mas ainda não há atrativos suficientes para deslocar um grande contingente de cientistas para a Amazônia. Além disso, num esforço (justificado) de evitar a biopirataria, a regulamentação brasileira efetivamente desencoraja parcerias com instituições estrangeiras. Um modelo que conseguisse trazer a iniciativa privada a investir na pesquisa das espécies amazônicas poderia finalmente capitalizar a nossa biodiversidade e gerar os recursos necessários para a preservação.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.