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Edição genética já começa a surgir em testes clínicos; entenda as variações

Daniel Schultz

25/07/2019 04h00

O leitor interessado pela biologia certamente já ouviu falar do método de edição de DNA baseado em CRISPR, que vem revolucionando a biologia desde a sua descoberta em 2012 (aliás foi o assunto do nosso primeiro post). Hoje em dia essa tecnologia, que permite reprogramar o DNA das células de maneira simples, já está presente na maioria dos laboratórios. As aplicações se multiplicam a cada dia, e o assunto domina as conferências da área. Também pudera, a história tem todos os elementos das grandes epopeias científicas dos nossos tempos. Desde a descoberta da técnica nos estudos de um "sistema imunológico" das bactérias, passando por uma corrida desenfreada por técnicas e patentes, até as discussões sobre a ética de um futuro com bebês projetados, digno de ficção científica. Mas afinal, a edição de DNA já está próxima de mudar o nosso dia-a-dia?

As tentativas de alterar o DNA humano já existem, como a tentativa desastrada e irresponsável do cientista chinês He Jiankui de criar bebês geneticamente modificados. Porém, essas tentativas ainda esbarram em algumas dificuldades, antes que possam corrigir possíveis defeitos no nosso genoma. Como garantir que as enzimas de edição mudem apenas os trechos de DNA programados, sem sair destruindo o resto de nossos genes? Como levar essas enzimas para dentro das células? Essencialmente, essas ferramentas precisam ser compactas, eficientes e precisas. Os métodos para desenvolvê-las são os mesmos de sempre: pesquisar novas espécies de bactérias atrás de enzimas semelhantes que sejam mais convenientes para nossas aplicações, e depois tentar aperfeiçoar as propriedades dessas enzimas através da engenharia nos laboratórios.

Ferramentas precisas

A primeira enzima de edição descoberta é a Cas9 (CRISPR-associated enzyme), presente no Streptococcus pyogenes, uma bactéria que pode causar infecções sérias. A enzima Cas9 pode cortar o DNA em locais de nossa escolha, usando um pedaço de RNA como guia. Porém, essa enzima é corpulenta, difícil de ser transportada ao interior das células, e sua atividade no corpo humano é baixa, por preferir temperaturas mais baixas. Além disso, por ser originária de um micróbio ao qual podemos ter resistência, muitas vezes a Cas9 é destruída por nosso sistema imunológico.

Uma segunda enzima Cas12a, descoberta no Acidaminococcus, já é menor e mais precisa que a Cas9. Ao invés de se grudar a qualquer seqüência que se pareça com a do RNA guia, essa enzima checa cada uma das posições da seqüência, aumentando a precisão. Mais recentemente, uma outra enzima Cas12e foi descoberta por análise metagenômica de uma amostra de água do solo. Nessa análise todo o DNA da amostra é analisado, independente de que espécies estejam presentes. Essa enzima é bem menor e não é relacionada à Cas9, portanto não é atacada pelo nosso sistema imunológico.

Apesar dos avanços, ainda faltava uma enzima capaz de funcionar perfeitamente a 37℃, a temperatura de nosso corpo. Até que cientistas do Instituto Broad analisaram bactérias presentes no intestino de ratos alimentados com camarões fermentados, e finalmente identificaram uma enzima da família Cas12b, presente no Bacillus hisashii, cuja temperatura ideal é exatamente a do nosso corpo. Ainda assim, essa enzima não cortava o DNA inteiramente, quebrando apenas uma das cadeias. Os cientistas então estudaram melhor o funcionamento da enzima e identificaram mutações que corrigem esse problema, resultando numa enzima compacta, precisa e optimizada para uma temperatura de 37℃, ideal para aplicações médicas.

Outras enzimas derivadas do CRISPR estão sendo desenvolvidas para ir além de apenas cortar DNA. A Cas13 corta RNA, o produto dos genes, enquanto que uma versão modificada da Cas9, a dCas9, apenas se gruda ao DNA e impede a sua leitura, efetivamente "desligando" o gene. Essas enzimas têm o potencial de modificar a expressão dos genes escolhidos sem alterar o DNA permanentemente, permitindo aplicações mais seguras.

Infiltrando as células

Resta o problema de transportar essas ferramentas às células que queremos alterar. No método mais utilizado hoje em dia, nem precisamos transportar as enzimas propriamente ditas. Basta apenas levar à célula um pedaço de DNA codificando o seu gene, e a própria célula se encarrega de produzir a enzima, juntamente com o RNA guia. Para isso, já existe na natureza um mecanismo especializado em introduzir DNA externo ao interior das células: os vírus. Assim, podemos produzir vírus nos laboratórios que contêm os genes de nossa escolha, utilizando-os como veículos para inserir esses genes nas células. A maioria das empresas desenvolvendo métodos de CRISPR utilizam o vírus AAV (adeno-associated virus) para esse fim.

Um problema com esse método é que, uma vez inserido na célula, o gene da enzima CRISPR fica por lá, produzindo as enzimas de edição e aumentando a chance de que um dia acabem causando algum estrago. Para evitar essa situação, outras empresas estão explorando o uso de nanopartículas para levar ás células apenas as enzimas já prontas. Essas nanopartículas devem encapsular as proteínas, escapar do nosso sistema imunológico, penetrar as membranas das células e só então liberar as enzimas. Apesar de promissora, essa tecnologia ainda não funciona tão bem.

Num futuro próximo

Dois anos atrás, as técnicas de CRISPR começaram a sair dos laboratórios para entrar na fase de testes clínicos. Os primeiros métodos testados envolvem a alteração de células do sistema imunológico extraídas de certos pacientes de câncer, para que possam reconhecer as células cancerígenas. Essas células são então reintroduzidas no paciente e passam a atacar os tumores. Iniciados na China, esses testes já estão ocorrendo também nos EUA, na Universidade da Pennsylvania. A CRISPR Therapeutics e a Vertex Pharmaceuticals também estão utilizando métodos semelhantes para tratar certas doenças sanguíneas.

Mais recentemente, os primeiros estudos utilizando CRISPR para alterar o DNA dentro de pacientes vivos já receberam o aval das autoridades nos EUA. A Editas Medicine vai tentar corrigir o gene causador da amaurose congênita de Leber, uma doença genética que causa cegueira em crianças. Enquanto isso, o Gene Editing Institute já procura autorização para iniciar os testes de uma terapia contra alguns tipos de câncer de pulmão, desabilitando um certo gene que torna as quimioterapias ineficazes.

Esforço coletivo

O sucesso das técnicas de edição genética mostra como a ciência moderna é uma colaboração internacional, com os avanços ocorrendo em laboratórios espalhados pelo mundo todo. Ressalta também como técnicas verdadeiramente transformativas surgem em pouco tempo de estudos aparentemente desconectados de aplicações práticas, que inicialmente apenas tentavam entender toda a diversidade da vida que encontramos na natureza. Portanto, da próxima vez que ouvir dizer que algum cientista está "gastando dinheiro público" para estudar alguma enzima estranha num micróbio genérico, lembre-se de que isso pode ser a chave para a cura de alguma doença ou para um novo material.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.