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De sua família aos Neanderthals: o que o DNA diz sobre seus antepassados

Daniel Schultz

27/06/2019 07h10

Os testes de DNA comerciais já se tornaram rotina, batendo a casa dos 20 milhões de usuários no ano passado. Por aproximadamente US$ 100, você manda uma amostra de sua saliva, tem seu DNA analisado e recebe um relatório completo com a origem aproximada de seus ancestrais, possíveis riscos para sua saúde, a porcentagem de seu DNA de origem Neanderthal e a possibilidade de se conectar com outras pessoas com DNA relacionado ao seu.

Com descontos para o natal, várias famílias têm feito esses testes juntas como uma maneira divertida de se conectar com as suas origens, mas muitas vezes também descobrindo alguns esqueletos no armário. Conforme aumenta a base de usuários e as estatísticas vão melhorando, a tendência é caminharmos para uma sociedade onde nosso DNA seja público, como fazemos com nossas fotos nas redes sociais. Mas afinal, o que dizem esses testes sobre a nossas origens?

Como são feitos

O DNA humano é composto de 3,2 bilhões de letrinhas, e a grande maioria delas é idêntica em todas as pessoas. No entanto, uma em cada mil letrinhas mostra diferenças de pessoa para pessoa, resultando em aproximadamente 5 milhões de pontos onde seu DNA pode ser diferente do dos outros.

Esses pontos são chamados de polimorfismos de nucleotídeo único (SNP na sigla em inglês), e servem de marcadores no mapeamento do DNA. Os testes de DNA identificam todos os seus SNPs e comparam com uma base de dados, baseando seus resultados em estatísticas.

Famílias unidas e destruídas

Como recebemos proporções bem definidas do DNA de nossos pais, herdando seus SNPs, os testes de DNA são muito precisos em determinar relações entre parentes próximos. Assim, esses testes podem trazer surpresas desagradáveis para famílias que esperavam manter certos segredos. Vão se multiplicando os casos em que um dos irmãos testados acaba sendo um meio-irmão, forçando a mãe a esclarecer algumas histórias mal-contadas.

Já existem grupos de Facebook dedicados a pessoas que descobriram que seus pais biológicos não eram os que os criaram.

Outra conseqüência desses testes de DNA é a perda do anonimato de doadores de esperma e de óvulos. Durante décadas esses doadores possibilitaram a fertilização in vitro para famílias que não poderiam ter filhos de outra maneira, com a expectativa de que a sua doação não resultasse em maiores responsabilidades no futuro. Agora, porém, esses doadores podem ser identificados por seus filhos biológicos mesmo se não fizerem os testes de DNA eles mesmos, bastando que algum parente próximo faça.

Alguns desses doadores acabam abraçando a idéia de repentinamente descobrirem suas dezenas de filhos biológicos, mas outros nem tanto. Na maioria das vezes o doador era jovem e solteiro, e hoje em dia não está disposto a trazer esses "problemas" para casa. Uma mãe que contactou o doador do esperma de sua filha acabou sendo processada pelo banco de esperma que ela utilizou. Hoje em dia já se aceita que não se pode mais garantir a anonimidade dos doadores, até porque as crianças não assinaram contrato nenhum, e não são impedidas de contactar seus pais biológicos.

E os segredos revelados não se limitam a casos de paternidade. Num outro caso famoso o assassino em série "Golden State Killer", que estuprou 45 mulheres e matou 12 pessoas entre 1976 e 1986, foi também descoberto quando um parente mais distante fez o teste de DNA. Esse DNA era relacionado com o DNA coletado das cenas dos crimes, e o resto da história pode ser desvendada identificando o parente de idade certa que morava próximo ao local dos crimes.

Seus ancestrais mais distantes

Apesar de testes de DNA serem precisos para determinar parentes mais próximos, eles geralmente não conseguem identificar parentes distantes. Isso se deve à maneira como os cromossomos de nossos pais são misturados (recombinados) em pedaços grandes de tamanho variado. A cada passagem vários desses pedaços são eliminados, até que não reste nenhum. Assim, 45% dos primos de quarto grau, descendentes dos mesmos tataravós, não têm nenhum DNA em comum.

Um dos primos de terceiro grau de Bob já não tem DNA em comum com ele (a faixa azul escura).

Mas caso você se interesse por seus ancestrais mais distantes, não se preocupe. Certamente você é descendente de personagens famosos, assim como todo mundo. Explico: você tem 4 avós, 8 bisavós, 16 trisavós e assim por diante, e por essa lógica, 1000 anos atrás você teria em torno de 150 bilhões de ancestrais distintos, certo? Obviamente a população do mundo era muito menor do que isso, o que significa que as linhas de sua árvore genealógica começam a se cruzar no passado distante. Alguns séculos atrás você provavelmente já teria algum ancestral comum aos dois lados de sua família.

As árvores genealógicas a essa altura começam a se parecer menos com árvores e mais com redes, e as árvores de pessoas diferentes começam a se misturar. Assim, em algum ponto do século XIII viveu alguém de quem todos os europeus são descendentes, e por volta de 1000 anos atrás já não é possível distinguir as genealogias das pessoas atuais. Portanto, todos os descendentes modernos de uma certa população descendem de todos os antepassados dessa população.

Caso você tenha ancestrais europeus, você é descendente direto de Carlos Magno, Imperador do Sacro-Império Romano-Germânico, que teve 18 filhos.

Suas origens

Como é difícil encontrar suas origens procurando parentes, voltemos aos SNPs para pesquisar suas origens. Essas variações de DNA (marcadores) aparecem devido a mutações que ocorrem em alguma pessoa, em algum momento da história, e acabam se estabelecendo numa população. A partir daí, essas mutações começam a se espalhar geograficamente, acompanhando as migrações dos descendentes dessa pessoa original. Assim, hoje em dia temos algumas mutações mais recentes que são restritas a regiões menores, e algumas mais antigas que são mais espalhadas por continentes. Sabendo a sua própria coleção de marcadores, podemos compará-la à de certas populações de referência para identificar a origem dos diferentes trechos de seu DNA.

Porém, esse processo ainda não é tão preciso, pois depende das populações de referência utilizadas, e diferentes sites podem fornecer resultados distintos. Além disso, as populações humanas se movem e se misturam desde todo o sempre, e as diversas regiões vão sendo sucessivamente ocupadas por povos diferentes. Assim, a composição genética dos "países" vai mudando ao longo da história. E mesmo assim, sua "etnia" não depende apenas do seu DNA, mas de laços culturais. Vide o caso da senadora americana Elizabeth Warren, que foi criticada por tribos indígenas por celebrar sua pequena porcentagem de origem nativa.

Os marcadores genéticos também nos permitem compreender essas intermináveis migrações da espécie humana. Sabemos, por exemplo, que há uma imensa diversidade de marcadores na África, e que todas as populações de fora da África têm os mesmos marcadores em comum, pois descendem de pequenas populações que migraram para fora do continente. Sabemos também que parte dessas populações de fora da África migraram de volta ao continente, representando uma grande proporção da população atual.

O passado distante da espécie humana

A análise do DNA de populações atuais também reservava novas surpresas. Já se sabia há muito tempo que as populações que migraram da África "interagiram" muito proximamente com os Homens de Neanderthal, que nos deixaram de herança por volta de 2% de nosso DNA. Porém, populações asiáticas também mostravam trechos de DNA herdados de alguma espécie de hominídeo ainda desconhecida. Os aborígenes da Austrália e Papua-Nova Guiné, os primeiros a migrar para fora da África, tinham até 5% de seu DNA herdado dessa espécie.

Postulou-se então, com base apenas na análise de DNA humano atual, que essa espécie de hominídeo deveria ter vivido na Ásia central no período das migrações humanas. Há dez anos, os primeiros fósseis foram encontrados na caverna de Denisova na Sibéria (a espécie foi então chamada de "Homem de Denisova"), e mais recentemente foram também achados no Tibet, e podem ter interagido com humanos há apenas 15 mil anos. Esses estudos indicam que certas variações genéticas herdadas dessas espécies podem influenciar nossa textura do cabelo, altura, olfato, sistema imunológico, adaptações a altas altitudes, etc. Podem também influenciar o risco a certas doenças.

As migrações do Homem de Heidelberg para fora da África, que deu origem aos Neanderthals e Denisovans.

Você é mais que apenas o seu DNA

Parte da nova realidade de conviver com os conhecimentos trazidos pela análise de nosso DNA é entender que isso é apenas uma ferramenta para entender a nossa identidade. Você é mais que seu DNA, e laços culturais e afetivos são mais importantes que alguns marcadores herdados de antepassados desconhecidos. É também importante ressaltar que há muito mais variação genética dentro de populações do que entre populações, e ninguém é limitado pela sua "etnia" (seja lá o que isso for). Entrando nessa realidade, é importante não cairmos nas mesmas armadilhas do passado que levaram ao racismo e à eugenia. Na realidade, o estudo do DNA só ajuda a desconstruir esses mitos. Porém, fica o recado de que os segredos de paternidade não podem mais serem levados à cova.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.