Sem metade da verba, laboratório mais moderno do Brasil está ameaçado
Orgulho da comunidade científica brasileira, o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) de Campinas (SP) tenta construir o Sirius, o mais moderno acelerador de partículas emissor de radiação síncrotron do mundo. Ele será útil para analisar células de diversos materiais. Mas o projeto recebeu apenas metade da verba de R$ 255 milhões da qual necessitava esse ano
A ciência brasileira vive momentos delicados. Afetada por vários cortes sucessivos nos últimos cinco anos, os institutos de pesquisa do país produzem menos e vêem várias de suas melhores cabeças escaparem para o exterior. No cenário atual de significativo apoio popular à redução indiscriminada de todo e qualquer gasto do governo federal, muita gente se pergunta sobre qual é a real utilidade de se investir dinheiro público em projetos mirabolantes aparentemente distantes do dia-a-dia sofrido do cidadão comum.
Gostaria de "jogar uma luz" num caso emblemático dessa questão: o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), causa de imenso orgulho e apreensão na comunidade científica e de expressões confusas nas demais pessoas. Ao custo de R$ 1,8 bilhões por oito anos (aproximadamente um estádio de Copa do Mundo), o país se propôs em 2013 a construir o Sirius, o mais moderno acelerador de partículas emissor de radiação síncrotron do mundo.
Com suas primeiras etapas concluídas às duras penas, o Sirius sofre para se manter no momento em que as operações tentam se iniciar, pondo em risco várias pesquisas de ponta que elevariam o patamar da ciência brasileira em diversas áreas da tecnologia e da saúde.
O que é luz síncrotron?
Quando os primeiros aceleradores de partículas foram construídos, um dos problemas a serem contornados era a perda de energia na forma de radiação (luz) causada pelo movimento circular dessas partículas pelos poderosos campos magnéticos que as aceleravam.
Com o tempo se percebeu que tais aceleradores de partículas, que conseguem acelerar elétrons a velocidades próximas à da luz, poderiam ser adaptados para justamente emitir altíssimas intensidades de radiação num espectro contínuo, desde os raios X, passando pelo ultravioleta e o espectro visível até o infravermelho. Utilizando campos magnéticos adicionais para fazer com que esses elétrons acelerados percorram um verdadeiro zigue-zague dentro de um trecho do acelerador, os aceleradores de luz síncrotron conseguem criar feixes ultrabrilhantes de radiação em frequências específicas que podem ser desviados e incididos sobre amostras de diferentes materiais.
E para que isso serve?
Assim como fazemos para ver com nossos próprios olhos, quando tentamos "enxergar" estruturas no nível atômico nós também precisamos iluminar essas amostras e captamos a luz que elas nos retornam. E quanto mais luz, mais detalhada a imagem. Porém, o comprimento de onda da luz utilizada deve corresponder aos detalhes que tentamos enxergar.
Assim, raios X curtos são utilizados para enxergar átomos, enquanto raios X mais longos e ultravioletas são apropriados para se estudar reações químicas. Já a radiação infravermelha pode ser usada para se estudar vibrações atômicas em moléculas e sólidos. Essas são algumas técnicas utilizadas:
Difração de raios X: os raios X colidem com os átomos de uma amostra e são espalhados, permitindo aos cientistas estudarem esse espalhamento e deduzirem a estrutura atômica da amostra. É útil para se determinar a estrutura de minerais, cerâmicas, proteínas, componentes celulares, polímeros e demais materiais complexos.
Espectroscopia: várias frequências de radiação são incididas numa amostra, e a absorção –reflexão e fluorescência nessas frequências– nos dão informações sobre a composição química dessas amostras. É especialmente útil na análise de amostras biomédicas e no desenvolvimento de materiais.
Microscopia: permite técnicas semelhante a um raio X de hospital, mas com altíssima definição e calibrada para "enxergar" elementos específicos.
Sobre o Sirius
O Sírius é a maior e mais complexa infraestrutura de pesquisa já construída no país, e foi projetado para ter o maior brilho dentre todos os equipamentos de sua classe no mundo. O novo laboratório está sendo construído com verbas do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), e conta com várias parcerias com a indústria nacional.
A WEG, empresa de equipamentos elétricos sediada em Santa Catarina, fabricou os milhares de eletroímãs; a Termomecânica, de São Paulo, construiu as câmaras de vácuo do anel de armazenamento; e diversas outras empresas contribuíram para o desenvolvimento de toda a tecnologia necessária. A primeira etapa foi concluída em novembro passado, já com dois dos três aceleradores prontos. O terceiro acelerador está previsto para o segundo semestre desse ano, o que possibilitará o início das pesquisas.
A construção de um equipamento desse porte possibilita a realização de várias pesquisas de ponta mundo afora que não são possíveis com os modelos de síncrotron obsoletos e que estavam à espera dessa nova tecnologia. E não são poucas. Em certas frequências, o brilho da luz emitida pelo Sirius pode ser mais de um bilhão de vezes superior ao equipamento atual, o UVX.
Isso pode permitir a análise de detalhes no interior de amostras, por exemplo, e não apenas em sua superfície. A análise de amostras de solo permite o desenvolvimento de fertilizantes mais eficientes. A análise de rochas auxilia a exploração de petróleo. Na área da tecnologia, há pesquisas desenvolvendo células solares, baterias e novos materiais. Na área da saúde, podemos identificar a estrutura de proteínas e determinar detalhes complexos do interior da célula, auxiliando a descoberta de novos medicamentos. Há diversas aplicações na biotecnologia e nanotecnologia.
Perigo
Porém, infelizmente, projetos ambiciosos como esse dependem de financiamento estável de longo prazo. Um congelamento de 80% da verba de infraestrutura do MCTIC anunciado em março afeta o Sirius diretamente. O Sirius recebeu apenas metade da verba de R$ 255 milhões da qual necessitava esse ano.
A ausência de verbas para pesquisa ameaça a perda de todo o pessoal qualificado que foi atraído para a empreitada. O diretor Antonio Roque da Silva diz que "temos gente que constantemente recebe ofertas de laboratórios no exterior, e a perda desse pessoal é o maior risco para o projeto".
O caráter colaborativo e altamente qualificado da pesquisa científica depende da lenta construção de pólos de excelência como o LNLS, e o desmonte de instituições de renome não pode ser rapidamente reposto pela próxima aventura de um governante com dinheiro em caixa. Para desenvolvermos tecnologia de ponta, precisamos enfrentar recessões e aprender a pensar no longo prazo.
Sobre os autores
Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.
Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.
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