Relógios atômicos e 500 kg de dados: como o buraco negro foi fotografado?
Poucos sabem dos desafios para se obter a primeira imagem real de um buraco negro, a milhões de anos-luz da Terra e capaz de sugar até a luz. Passou por combinação de telescópios e ajuste de relógios atômicos até o transporte de quilos de discos rígidos
Nesses últimos dias temos sido bombardeados pela imagem desfocada de um anel amarelado: a primeira foto de um buraco negro. Entre os entusiastas da astronomia, foi uma explosão de alegria. A imagem era esperada com ansiedade, e muito se discutia sobre que forma ela teria.
Já nós, leigos, mais uma vez tivemos que forçar nossas cabecinhas a tentar compreender a relatividade geral e os milhões de anos-luz envolvidos naquele anel. Como foi possível fotografar algo tão distante que não deixa escapar luz nenhuma?
No final das contas, mais do que pôr uma face ao mais elusivo objeto celestial, o grande resultado dessa empreitada foi a prova de que novos métodos computacionais sofisticados agora permitem nossos telescópios a enxergar ainda mais longe, permitindo novas descobertas.
De Einstein a Hawking
Buracos negros, um século atrás, eram apenas estranhezas previstas pelas recém-formuladas equações de Einstein sobre a relatividade geral. Segundo essas equações, objetos de grande massa "dobram" o espaço-tempo e criam o que entendemos por gravidade.
Assim, a trajetória da Terra ao redor do Sol, por exemplo, é uma "reta" num espaço curvado pela massa de nossa estrela. Mas essas mesmas equações também previam que pontos de massa muito grande não deixariam escapar nem mesmo a luz, e tudo o que se aproximasse demais desse objeto, cruzando um certo "horizonte de eventos", estaria perdido para sempre.
A ideia, obviamente, demorou para ser aceita. Ao princípio nem o próprio Einstein acreditava neles, mas com o tempo buracos negros começaram a ser estudados de maneira mais séria por vários cientistas, entre eles Stephen Hawking.
Hoje em dia, com as equações da relatividade geral mais que confirmadas, a existência desses corpos celestes densíssimos já era dada como certa, e seus efeitos já haviam sido notados em estrelas que orbitavam um certo ponto escuro em velocidades alucinantes. Mas buracos negros propriamente ditos ainda não haviam sido diretamente observados.
Estrelas orbitando um buraco negro.
Felizmente, apesar de negros, esses buracos estão rodeados de luz. Isso porque a matéria gravitando ao redor de um buraco negro é acelerada a velocidades próximas à da luz, e assim se aquece e emite radiação. Parte dessa luz cai para dentro do buraco, mas parte dela escapa e pode ser observada na forma de um anel ao redor de um corpo escuro.
Uma antena do tamanho da Terra
O buraco negro fotografado, na galáxia Messier 87, tem o tamanho (o raio do horizonte de eventos) de nosso sistema solar e pesa bilhões de vezes mais que o Sol. Ainda assim, a 55 milhões de anos-luz da Terra, estava muito longe para ser detectado diretamente.
Há um limite fundamental na capacidade de resolver objetos a grandes distâncias. Basicamente, quanto menor o objeto, maior deve ser o tamanho da antena que capta a radiação proveniente desse objeto. E enxergar o buraco negro exige uma resolução equivalente à necessária para observar uma laranja na superfície da Lua.
Fazendo as contas: para as frequências de rádio, ideais para observar o buraco negro, seria necessária uma antena do tamanho da própria Terra. E foi mais ou menos isso o que foi feito.
Comparação do tamanho do buraco negro com um pixel obtido pelo telescópio Hubble.
Obviamente, não dispomos de uma antena tão grande. Mas dispomos de várias antenas menores espalhadas pela Terra, capazes de captar um ponto da imagem que seria captada pela antena gigante. Além disso, a Terra gira e se movimenta pelo espaço, então cada uma dessas antenas na realidade pode captar uma linha da imagem. Assim, coordenando várias antenas podemos obter várias dessas linhas e tentar reconstruir a imagem total.
E não foi tarefa fácil.
Relógios atômicos foram utilizados para sincronizar telescópios do Pólo Norte ao Pólo Sul, pois as imagens dependem de pequenas diferenças entre os sinais captados por cada antena.
Os telescópios estiveram todos apontados ao centro da galáxia M87 por dez dias, gerando uma quantidade astronômica de dados. Muito dado para ser transmitido pela internet. Os cientistas tiveram que esperar o verão do hemisfério sul para, depois do degelo, trazer quase 500 kg de discos rígidos de um telescópio da Antártica.
Esses dados foram espalhados por vários grupos de cientistas ao redor do mundo, e parte do desafio tecnológico foi coordenar os vários clusters –termo técnico para definir combinações de vários computadores trabalhando como se fossem um só– necessários para processar toda essa informação.
Um algoritmo para unir tudo
Muitos times de astrônomos, físicos e engenheiros foram necessários para implementar esse grande telescópio virtual, o Event Horizon Telescope, idealizado por Sheperd Doeleman, do Centro de Astrofísica Harvard-Smithsonian.
A parte mais inovadora do projeto foi o desenvolvimento de um algoritmo sofisticado para a reconstrução da imagem total do buraco negro baseada nos vários pedacinhos fornecidos pelos telescópios individuais, que catapultou à fama Katie Bouman, uma das líderes do projeto.
Esse algoritmo, treinado em várias imagens de todos os tipos, é capaz de distinguir certas características gerais de imagens fotográficas. Alimentado por fragmentos da imagem total, ele consegue preencher os espaços vazios baseado nessas características, ligando os pontos até formar uma imagem coerente.
Importantemente, esse algoritmo não se baseia em nenhuma suposição sobre a aparência de um buraco negro. Poderia ser qualquer coisa.
Mas eis que depois de dois anos de análises de dados surge o esperado anel.
No final das contas, as equações da relatividade geral não só explicam nossa realidade mais tangível, mas também nos permitem entender fenômenos em escalas inimagináveis, funcionando até a beira do abismo no centro do anel.
Enquanto isso, aqui na Terra, vamos ensinando nossos computadores, cada vez mais poderosos, a reconhecer padrões em informações incompletas, à maneira de nosso próprio cérebro. E dessa maneira imagens cada vez mais detalhadas de nosso universo vão se formando. "Em princípio, poderíamos ler as placas de trânsito dos alienígenas", diz o astrônomo Daniel Marrone, da Universidade do Arizona. "Mas elas teriam de ser superbrilhantes".
Sobre os autores
Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.
Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.
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