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Para onde o mundo vai

Já temos a cura da Aids? Quase. Mas é preciso cautela

Daniel Schultz

29/03/2019 04h00

Esse último mês fomos novamente surpreendidos com manchetes sobre a "cura da Aids", trazendo esperança para os 37 milhões de portadores do vírus HIV mundo afora e gerando a expectativa para o fim dessa doença, que já foi uma sentença de morte. Mas há mesmo razões para comemorar?

Sim, várias, mas cautelosamente. A confirmação de um segundo caso onde o vírus HIV foi permanentemente removido de um paciente não significa que já há um tratamento disponível que elimine a doença. Mas significa sim que estamos fechando o cerco e chagando perto de tratamentos capazes de eliminar o vírus HIV, coroando décadas de esforço que lentamente elevaram a expectativa de vida dos portadores quase aos mesmos níveis da população saudável.

Essa história começou há exatos doze anos, com o chamado "paciente de Berlin". Esse paciente, portador do vírus HIV, sofria também de leucemia (porque desgraça pouca é bobagem). Depois de tentativas frustradas de curar o câncer com quimioterapia, restou a opção do transplante de medula óssea. Nesse procedimento as células tronco do sistema imunológico do paciente, comprometidas pelo câncer, são eliminadas por radiação ou quimioterapia e substituídas pelas células obtidas de um doador, que regeneram todo o sistema imunológico com células geneticamente iguais às implantadas.

Nesse caso, as células tronco implantadas no paciente de Berlin vieram de um doador que possuía uma mutação na proteína CCR5 que sabidamente protege o paciente contra a infecção pelo HIV. Depois do procedimento, o paciente de Berlin foi tratado com drogas imunossupressoras fortíssimas, que já não são mais usadas, e sofreu complicações terríveis por vários meses. Passou por comas induzidos e quase faleceu, mas ao final se recuperou e surpreendentemente havia se livrado do vírus HIV.

A proteína CCR5 é um receptor na superfície de células do sistema imunológico que é reconhecido pelo vírus HIV e usado como entrada ao interior da célula. Uma determinada mutação nessa proteína, chamada delta 32, é capaz de mudar o receptor de maneira que o vírus HIV não mais consegue reconhecê-lo (foi a mesma mutação introduzida recentemente nos controversos bebês chineses geneticamente modificados). Como no caso de um transplante de medula as células do sistema imunológico naturais do paciente são completamente substituídas pelas do doador, o vírus HIV já não consegue infectar nenhuma célula, e acaba sendo completamente eliminado.

A partir daí cientistas tentaram replicar esse procedimento em vários pacientes portadores do HIV que precisavam de transplantes de medula, mas sem sucesso. O que levou à especulação de que uma destruição tão completa do sistema imunológico quanto a do paciente de Berlin seria necessária para eliminar o vírus. Esse novo caso de sucesso do "paciente de Londres" mostra que é possível eliminar o vírus sem ver a morte de tão perto. A recuperação desse paciente foi muito menos complicada que a do paciente de Berlin, assim como outros casos de sucesso que já estão vindo em sequência.

Mas isso significa que já temos a cura da Aids? Ainda não. Transplantes de medula são complicadíssimos, e trazem muito mais risco que os tratamentos convencionais da doença, que mantém níveis baixos do vírus HIV, mas não o eliminam. Mas esse sucesso recente aponta para possíveis alternativas de acabar com o vírus, capazes de introduzir a mutação nas células do paciente sem a necessidade do transplante.

Uma direção é extrair células tronco do paciente, modificá-las em laboratório, introduzindo a mutação, e depois reintroduzi-las no paciente. Tais tentativas ainda não conseguiram elevar a proporção de células modificadas a um nível que completamente elimina o vírus, mas a empresa Sangamo Therapeutics já conseguiu reduzir a carga viral em mil vezes.

Outras opções incluem o uso de vírus modificados ou nanopartículas para introduzir as enzimas capazes de realizar a mutação diretamente nas células imunológicas do paciente, mas essa é uma realidade ainda um pouco distante. Outros esforços tentam a modificação das células tronco do paciente, que por sua vez regenerariam o sistema imunológico com células contendo a mutação. Porém, ainda que a mutação na proteína CCR5 seja capaz de lidar com a maioria das variantes do HIV, essas células ainda seriam vulneráveis ao HIV X4, que usa outro receptor para a invasão.

Ainda que tratamentos que resultassem na eliminação completa do vírus HIV seriam sem dúvida uma excelente notícia, é importante ressaltar o quanto os tratamentos convencionais tem evoluído, junto com políticas públicas que têm reduzido a incidência da doença. Os coquetéis usados para controlar a carga viral do HIV agora podem ser obtidos em injeções mensais, e novas drogas como Truvada ou Discovy podem até mesmo serem usadas na proteção de pessoas saudáveis. Via de regra, as notícias bombásticas sobre curas de doenças quase sempre são questionáveis, mas as evoluções no longo prazo são certamente palpáveis.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.