Topo

Para onde o mundo vai

Menos Nasa e mais empresas: entenda a nova corrida espacial

Daniel Schultz

28/02/2019 10h25

Nos meus tempos de aluno do ITA, no final dos anos 90, muito se falava sobre o programa espacial brasileiro, que buscava incluir o Brasil num seleto grupo de países capazes de lançar seus próprios satélites em órbita. Por duas vezes, em 1997 e 1999, nos reunimos em frente a um grande telão, num evento com pompa e várias autoridades presentes, para acompanhar o lançamento do VLS da base de Alcântara no Maranhão.

Por duas vezes vimos o foguete subir, subir subir e se desfazer em chamas, causando um clima de decepção generalizada. Anos depois, em 2003, um acidente ainda pior. A poucos dias de seu lançamento, a terceira iteração do VLS sofreu uma ignição prematura e explodiu, matando 21 técnicos e mergulhando o programa espacial brasileiro num hiato que dura até hoje (exceto por nos fornecer um ministro).

Nessa época ainda era recente a memória do acidente da Challenger, o ônibus espacial americano que explodiu em 1986 matando sete astronautas. Depois disso as missões espaciais tripuladas americanas minguaram, e o ônibus espacial foi finalmente aposentado em 2011. A verdade é que o final da guerra fria esfriou a corrida espacial desenfreada das décadas anteriores, e a Nasa nunca mais teve o mesmo nível de financiamento do governo americano.

Mas hoje os americanos se preparam para mais uma vez lançarem homens ao espaço. Dessa vez capitaneados por empresas privadas, visando um mercado de transporte espacial que supra a demanda por satélites para um mundo cada vez mais conectado. A Nasa agora se utiliza dessas empresas para as suas missões, e até mesmo financia o desenvolvimento de seus projetos.

A competição no setor privado se mostrou saudável, e causou um verdadeiro renascimento da corrida espacial. Ainda esse ano, duas empresas americanas pretendem levar astronautas à estação espacial. A SpaceX de Elon Musk usará seu foguete Falcon 9 para lançar a cápsula tripulada Dragon, enquanto que a Boeing lançará sua nave Starliner usando foguetes Atlas V, numa colaboração com a Lockheed Martin.

E não pára por aí. Depois de uma década turbulenta, a Virgin Galactic de Richard Branson também parece pronta para levar passageiros para vôos orbitais. Até mesmo o programa espacial brasileiro voltou a se animar, desenvolvendo o VLM numa colaboração com o centro espacial alemão DLR.


Primeiro voo espacial da Virgin Galactic.

A transferência do desenvolvimento de foguetes para a iniciativa privada resolveu um problema antigo de as agências espaciais estarem sujeitas a flutuações políticas e burocracias governamentais.

Assim como toda ciência, as verbas de programas espaciais sempre estiveram entre as primeiras a serem cortadas durante crises econômicas, e a paralisação de projetos e a perda de cientistas são difíceis de serem recuperadas.

Apesar dos eventuais devaneios de milionários excêntricos como Musk e Branson, a injeção mais constante de capital durante essa última década proporcionou um verdadeiro salto tecnológico no setor. Os vídeos dos foguetes reutilizáveis da SpaceX levando um carro esportivo da Tesla ao espaço e voltando rodaram o mundo. Até mesmo as idéias grandiosas de levar a humanidade a Marte soam cada vez mais plausíveis.

Mas além dos lindos vídeos promocionais, da realização dos sonhos astronáuticos de milionários e dos discursos inflamados da nossa missão no universo, quais são os motivos mais terrenos movendo toda essa corrida?


Lançamento de um carro da Tesla ao espaço pela SpaceX.

O barateamento e a flexibilização do lançamento de satélites têm viabilizado o lançamento de novas tecnologias ao espaço. Hoje em dia há opções para o lançamento de pequenos satélites a órbitas baixas (até 2 mil quilômetros de altitude) por cerca de US$ 250 mil.

Dada a pouca distância, esses satélites se comunicam rapidamente com a Terra e gastam menos energia, mas por outro lado cobrem uma área pequena. Portanto, é necessário uma "constelação" desses satélites para conectar o planeta, que depende de vôos baratos para lançamentos e manutenções. A própria SpaceX pretende lançar cerca de 12 mil satélites nos próximos anos no projeto Starlink, com o intuito de fornecer um serviço de internet rápida cobrindo todo o planeta.

O preço do lançamento de satélites geoestacionários, que precisam alcançar uma órbita muito mais alta de 36 mil quilômetros, também caiu cerca de 20% nos últimos cinco anos. Esses satélites, apesar da comunicação lenta, estão sempre localizados acima do mesmo ponto na Terra, permitindo a comunicação com antenas fixas, e são muito utilizados por transmissoras de televisão. Os satélites geossíncronos usados pelos sistemas de GPS também estão nessas órbitas mais altas.

Altitudes orbitais dos diferentes tipos de satélites.

Do outro lado do espectro, foguetes reutilizáveis extremamente poderosos já podem levar cargas gigantescas a preços acessíveis. O Falcon Heavy da SpaceX leva 64 toneladas a um preço de 90 milhões de dólares por lançamento, e o protótipo Starship promete bater o limite de 100 toneladas, permitindo o lançamento de estruturas cada vez maiores, como telescópios e estações espaciais.

Esses foguetes nos permitem sonhar com a construção de estações permanentes na Lua ou em Marte, já que poderiam levar grandes quantidades de equipamento tanto na ida quanto na volta. Depois de décadas sem pousos na Lua, o interesse pelo nosso satélite natural foi renovado, com a China já recentemente pousando uma missão no lado oposto à Terra. Os Estados Unidos, a União Européia, o Japão, a Índia e Israel todos planejam missões à Lua nos próximos anos.

E para quem gosta de penetrar o terreno da ficção científica, algumas propostas mirabolantes pretendem substituir os foguetes inteiramente no lançamento de satélites.

A empresa japonesa Obayashi recentemente se propôs a construir um elevador espacial, que trafegaria num cabo unindo uma estação na Terra a uma estação geoestacionária acima de 36 mil quilômetros de altitude (aproximadamente a distancia de uma volta ao mundo). A própria rotação da Terra manteria o cabo esticado, e uma viagem de elevador reduziria o custo de enviar satélites ao espaço de 7 mil dólares por quilo para apenas 50 dólares por quilo. Pesquisadores da Universidade de Shizuoka inclusive já mandaram um pequeno protótipo ao espaço para ser testado.

Uma outra alternativa ainda mais distante é um cabo de lançamento de 2 mil quilômetros, preso à Terra pelas pontas, cujo centro seria mantido a 80 quilômetros de altitude pelo momento causado pela rotação de um cabo girando pelo seu interior. Esse sistema, a ser instalado sobre algum oceano, poderia lançar ao espaço várias toneladas diariamente por preços baixíssimos. Mas em teoria, pois na prática ainda existem grandes desafios tecnológicos para implementar essas estruturas permanentes.

Enquanto isso, a proliferação de satélites trazida pelo renascimento dos programas espaciais e seus foguetes modernos vem conectando a humanidade cada vez mais. Enquanto o Sputnik, o primeiro satélite posto nos céus pelos soviéticos a mais de 60 anos, transmitia um simples "bip" a ser captado pelos rádios amadores da época, logo será possível assistir os vídeos da SpaceX em HD do meio da Amazônia, graças à evolução em larga escala dessa mesma tecnologia.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.