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Para onde o mundo vai

Barragem como a de Brumadinho é barata e perigosa; entenda o vazamento

Daniel Schultz

31/01/2019 12h50

As consequências, infelizmente, nós já conhecemos bem: muitas mortes e terras devastadas. Três anos depois de um desastre semelhante, numa barragem semelhante a poucos quilômetros dali, em Mariana, auditores contratados pela Vale, analisando documentos fornecidos pela Vale, diminuíram a classificação de risco da barragem de Brumadinho e a classificaram como "estável".

Se ofenderam com as acusações da ambientalista presente na reunião, que foi voto vencido. As baixas nos preços dos minérios exigiam cortes de custos e "desburocratização". A barragem I da Mina Córrego do Feijão, iniciada em 1976, é uma das 130 barragens desse tipo no país, projetadas para conter rejeitos da mineração que geralmente são tóxicos.

Mas afinal o que são as barragens de alteamento a montante? Por que essas barragens tão perigosas, que são proibidas em vários países do mundo, ainda estão em uso por aqui? Tentei voltar aos meus tempos de engenheiro para tentar explicar.

Barragens de rejeitos estão entre as maiores estruturas de engenharia da Terra. A barragem de Syncrude, no Canadá, por exemplo, tem 18 quilômetros de comprimento e chega a 88 metros de altura. Essas barragens são construídas com a intenção de conter os rejeitos da mineração permanentemente, e há cerca de 3500 dessas barragens espalhadas pelo mundo.

Ao contrário das barragens utilizadas nas represas, que são construídas inteiramente antes do seu funcionamento, as barragens de rejeitos são construídas aos poucos, conforme o necessário. Um dique inicial é construído usando aterro compactado, e conforme o volume de contenção vai se preenchendo pelos rejeitos, a barragem é erguida (alteada) usando diques construídos sucessivamente com os próprios materiais do rejeito. É aí onde mora a diferença.

Esse processo de alteamento pode ser feito de maneiras diferentes, classificadas de acordo com o deslocamento da crista da barragem conforme ela vai se erguendo, para montante (correnteza acima) ou jusante (correnteza abaixo).

Barragem de alteamento a montante, barata e perigosa.

As barragens de alteamento a montante são basicamente a alternativa mais barata e mais perigosa para se lidar com a lama formada pelos rejeitos da mineração, pois utilizam a menor quantidade de material na sua construção.

São responsáveis pela grande maioria dos casos de rompimento de barragens mundo afora.

Nesse método, quando o volume dique inicial é preenchido, um novo dique é construído acima do dique original, deslocado no sentido dos rejeitos. A expectativa é que uma "praia de rejeito" junto à barreira terá se sedimentado, servindo de base à construção do novo dique. É aí que mora o perigo.

A lama formada pelos rejeitos é frequentemente composta de materiais de granulação fina, de difícil sedimentação. Conforme a quantidade de água ou da presença de estímulos mecânicos, esses materiais podem essencialmente se liquefazer, passando a fluir como líquidos.

Assim, os diques construídos acima dos rejeitos vêm abaixo, liberando toda a lama acumulada. Esse tipo de barragem é proibida em vários países, principalmente em terrenos sujeitos a terremotos, como o Chile.


Liquefação do solo demonstrada com ingredientes caseiros.

O comportamento de materiais granulares sempre intrigou os cientistas, mostrando um comportamento entre um sólido e um fluido, como observamos na areia movediça. A água pode permear esses materiais preenchendo todo o espaço entre os grãos, especialmente nos de granulometria fina, como a argila ou a lama dos rejeitos de mineração. Sob condições normais, o atrito entre os grãos dão a esses materiais uma consistência mais "sólida".

No entanto, se a pressão da água é suficiente para suportar uma carga aplicada ao material, ela pode efetivamente separar os grãos e o material passa a se comportar como um líquido. Dessa maneira, caso haja pressão suficiente agindo sobre os rejeitos que não tenham sido propriamente sedimentados ao longo da barragem, os diques podem literalmente "afundar na lama" e ruir, provocando os desastres.

Barragem de alteamento a jusante, mais cara e mais estável.

Depois de dois desastres num curto espaço de tempo, parece que finalmente está se falando em banir as barragens de alteamento a montante. Mas quais são as alternativas?

Uma delas é a construção de barragens com método de alteamento a jusante ou na linha de centro, onde os diques são construídos sucessivamente sobre os diques anteriores, em terreno firme. Esses métodos usam muito mais material e são de construção muito mais cara.

Outra opção, a ideal, é submeter os rejeitos a um processo de secagem, que os transforma em matéria-prima para a construção civil. Alguns estudos mostram que a contenção a seco aumenta os custos em apenas 20%, e poderia acabar com as barragens na maioria dos casos onde pode ser usada.

Obviamente, esses métodos mais caros só vão interessar às mineradoras se essas forem devidamente responsabilizadas pelos sucessivos acidentes. Se o preço cobrado pelas vítimas de Mariana e Brumadinho e pela destruição do meio-ambiente for superior ao do processo de modernização das barragens.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.