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Para onde o mundo vai

Imortais? Organismos "invertidos" seriam imunes a vírus, bactérias e veneno

Daniel Schultz

07/09/2018 10h28

Seriam mais ou menos como fantasmas. Estariam aqui conosco, seriam iguais a nós, mas não conseguiriam interagir com o nosso mundo. Cientistas estão tentando criar seres vivos compostos pelas mesmas moléculas que compõe toda a vida na Terra, mas de "orientação invertida". Esses organismos teriam que se alimentar de nutrientes invertidos e seriam imunes aos vírus e bactérias que nos afligem. Teriam grandes aplicações na biotecnologia, mas também poderiam trazer sérios riscos. E de quebra ainda ajudariam a elucidar um dos grandes mistérios sobre a origem da vida na Terra.

Apesar de toda a diversidade de seres vivos no nosso planeta, desde os vírus e microorganismos até as plantas e nós mamíferos, ao nível molecular todos funcionamos de uma maneira quase idêntica. Todos os organismos conhecidos armazenam em moléculas de DNA a informação de como produzir proteínas (o "dogma central" da biologia) e todos os organismos produzem energia metabolizando os mesmos tipos de açúcares. Ai entra um fato interessante: várias dessas moléculas poderiam existir em duas "orientações", mas a vida na Terra só utiliza uma delas. Essas duas orientações possíveis (quiralidade) são como imagens espelhadas uma da outra, como nossas duas mãos, as quais não conseguimos sobrepor uma à outra. Todos os nossos aminoácidos (que formam nossas proteínas) são de orientação esquerda, enquanto que todos os nossos açúcares (que compõe nosso DNA) são de orientação direita. A biologia molecular de nossas células depende de um infinidade de reações químicas onde todas as pecinhas se encaixam perfeitamente e tentar encaixar uma molécula de orientação oposta seria como tentar usar o sapato direito no pé esquerdo. Apesar disso, nada impediria que toda a vida na terra existisse na orientação contrária.

Reações químicas que produzem moléculas quirais a partir de moléculas não-quirais geralmente resultam em quantidades iguais das duas orientações. Portanto, é de se imaginar que na formação da Terra tínhamos a opção de usar ambas as orientações. Para entender melhor esse processo, cientistas (como Jason Dworkin da NASA) contam com a ajuda de meteoritos. Essas rochas celestes são como cápsulas do tempo, feitas do mesmo material que originou nosso próprio planeta, e supostamente contém as mesmas moléculas que existiam na Terra antes da vida. Aí vem outro fato curioso: a maioria dos asteroides contém quase a mesma proporção de aminoácidos de orientação esquerda e direita, mas a pequena diferença é em favor da orientação que usamos em nossas células. O porquê ninguém sabe ao certo, mas se suspeita que luz polarizada pode ser emitida por estrelas e desintegrar preferencialmente uma das orientações. Donna Blackmond, do Instituto Scripps, estuda processos que poderiam amplificar essa pequena diferença e gerar moléculas mais complexas apenas na orientação usada na vida.

Mas como seriam esses organismos invertidos? Se todo os aminoácidos e açúcares do seu corpo magicamente se transformassem no isômero de orientação oposta, você ainda viveria por um tempo, mas não conseguiria digerir nenhum alimento, pois suas novas enzimas não reconheceriam as moléculas habituais. Posteriormente, depois de morrer de fome, os fungos e bactérias também não conseguiriam digerir seus restos mortais. Por outro lado, se você conseguisse convencer cientistas bioquímicos a sintetizar alimentos "invertidos" (não espere nada delicioso, seriam pílulas de astronauta), você não precisaria se preocupar com doenças. Vírus não conseguiriam se conectar aos receptores invertidos de suas células para invadi-las, e bactérias não conseguiriam digerir seus nutrientes  para estabelecer colônias. Veneno de cobra, água-viva ou abelha, nada te afetaria, pois são proteínas que não reconheceriam seus alvos.

São essas mesmas características que trazem os benefícios e riscos da busca por esses organismos. Um dos maiores obstáculos no uso de bactérias para produzir compostos químicos úteis para nós, como biocombustíveis, é que a modificação dos genes dessas bactérias as deixam vulneráveis, pois elas ainda precisam existir nesse mesmo mundo competitivo que conhecemos. Por outro lado, bactérias invertidas não precisariam se preocupar em serem eficientes, pois não teriam competidores. Cientistas poderiam desenvolver linhagens sem se preocuparem em perdê-las em ataques de vírus. E essas células não se multiplicariam sem que lhes fosse fornecido alimentos "invertidos". Mas é aí que mora o perigo. Se por algum motivo fossem desenvolvidas células capazes de fazer fotossíntese, necessitando apenas dos nutrientes básicos sem orientação (dos quais também dependemos), se multiplicariam sem nenhum obstáculo, pois não teriam predadores. Ao longo do tempo poderiam preencher nossos oceanos e mudar a composição de nossa atmosfera.

Cientes desses riscos, ainda assim George Church e Jack Szostak (respectivamente do Instituto Broad e do MGH, em Boston) procuram criar uma bactéria invertida. Não é uma tarefa fácil. Toda a maquinaria celular que lê DNA para produzir proteínas está afinada para a orientação que usamos. A peça chave a que Church se dedica é o ribossomo, que lê RNA e produz proteínas a partir de aminoácidos. Ele tenta produzir um ribossomo alterado que leia RNA comum, mas que se alimentado com aminoácidos invertidos consiga produzir proteínas invertidas. Dessa maneira, serviria como uma ponte entre a nossa bioquímica e essa bioquímica "espelhada".

Conseguirão? Church acha que sim, Szostak acha que não. Resta ver se mesmo que reunindo todas as moléculas necessárias será possível "dar a partida" nas células invertidas. Se for mesmo possível, novas avenidas se abrirão na biotecnologia e no estudo da origem da vida. Enquanto isso vamos tirando várias lições sobre as dificuldades de se manipular esses processos mais básicos da biologia celular.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.