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Para onde o mundo vai

O circuito que evoluiu sozinho até virar um rádio

Daniel Schultz

12/07/2018 04h00

Já se vão quase 160 anos desde que Darwin publicou "A origem das espécies", e hoje em dia as imagens da árvore da vida ou da evolução dos hominídeos são coisas corriqueiras. Com o passar do tempo, a evolução se tornou um conceito intuitivo, e começou a permear outras áreas do conhecimento fora da biologia. A formalização dessa "força da natureza" se tornou muito útil na engenharia e na ciência da computação, que enxergaram na seleção natural um grande processo de otimização. Hoje vamos mostrar uma história curiosa tirada de um artigo de engenharia eletrônica que mostra como apesar da evolução já ter se estabelecido como um método importante no mundo controlado das simulações, no mundo real ela é um processo muito complexo, cujas conseqüências ainda estão longe de serem previsíveis.

Rabiscos originais de Darwin, mostrando o primeiro desenho de uma árvore genealógica. Bem ao lado, ele escreveu "I think" (eu acho).

A descoberta do código genético, que contém a informação que é passada de geração em geração, permitiu que evolução se tornasse um problema mais bem definido, e matemáticos se puseram a desvendar os seus mistérios. A ideia não é tão complicada, basicamente precisamos de três coisas: 1) algum tipo de informação que pode ser reproduzida, passada de geração em geração (como o código genético), 2) alguma forma de alterar essa informação (mutação, recombinação, etc) e 3) algum processo seletivo, que escolhe as "melhores" soluções (seleção natural, o sucesso na reprodução). Assim, as melhores soluções que vão aparecendo são mantidas nas próximas gerações.

Na engenharia, esse conceito é muito útil em problemas cujas soluções são difíceis de se calcular explicitamente. Esses problemas geralmente são resolvidos por métodos de otimização, que partem de uma solução genérica e vão melhorando essa solução de pouquinho em pouquinho. O problema é que a maioria desses métodos acaba encontrando apenas soluções próximas do "chute" inicial, deixando de enxergar soluções completamente diferentes.

Na década de 60, engenheiros começaram a desenvolver os chamados algoritmos genéticos (o pioneiro foi John Holland, da Universidade de Michigan), que aplicam o conceito da seleção natural natural a esses processos de otimização. Esses algoritmos partem de diversas soluções e as modificam e recombinam usando uma certa aleatoriedade, selecionando as melhores para uma próxima iteração. Dessa forma o algoritmo consegue "pular" para soluções um pouco mais distantes das originais, explorando mais possibilidades. Esses métodos se mostraram muito úteis em projetos com soluções complexas.

A forma complexa dessa antena, desenvolvida pela NASA para naves espaciais, foi desenvolvida por algoritmos genéticos.

Pois bem, cientistas da Universidade de Sussex, na Inglaterra, resolveram criar uma implementação física desses algoritmos. Desenvolveram uma rede de transistores capaz de criar conexões aleatoriamente entre seus componentes. As redes resultantes podem então ser testadas e recombinadas de acordo com a sua capacidade de realizar alguma determinada função pré-definida. Dessa maneira, a rede de transistores "evolui" até chegar em alguma arquitetura otimizada capaz de realizar essa função. Para testar o conceito, os cientistas resolveram começar com algo simples: desenvolver uma rede capaz de gerar oscilações. Circuitos capazes de oscilar são simples e corriqueiros na engenharia eletrônica, e muito bem estudados. A expectativa então é que a rede de transistores evoluísse para alguma configuração reconhecível que sabidamente oscilasse.

O circuito desenvolvido por cientistas da Universidade de Sussex para implementar a evolução de uma rede de transistores.

Dito e feito, o circuito evoluiu. Muito trabalhou, foi oscilando cada vez melhor, e depois de várias iterações chegou numa configuração otimizada, que oscilava perfeitamente dentro dos critérios estabelecidos pelos cientistas. Mas para sua surpresa, o resultado era um emaranhado irreconhecível! Não fazia nenhum sentido, com até mesmo longas conexões que não iam a lugar algum. Depois de muito quebrar a cabeça, finalmente perceberam o que estava se passando: as longas conexões sem destino eram na realidade antenas. O circuito, em vez de criar as próprias oscilações, havia evoluído um atalho, passando a captar sinais de rádio!

Esse episódio ilustra bem a dificuldade em se prever os resultados da evolução natural no mundo real. Apesar de já termos uma boa ideia de como esse processo funciona, ainda é difícil controlar todas as variáveis em casos mais complexos. Difícil identificar quais características ou estratégias serão privilegiadas pela seleção natural. Por exemplo, apesar do conceito de seleção natural estar intimamente ligado ao sucesso reprodutivo, algumas espécies dão a luz a proles imensas (cavalos marinhos têm por volta de 2000 bebês por vez), enquanto outras dedicam suas vidas a cuidar de alguns poucos filhos (como elefantes). Nós mesmos evoluímos desde a época de nossos bisavôs e seus 20 filhos (onde nem todos "vingavam"), e hoje nos dedicamos a fornecer uma boa educação a no máximo uns dois ou três rebentos.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.