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Proteínas fluorescentes: o motorista que perdeu o prêmio Nobel

Daniel Schultz

14/06/2018 04h00

Quando comecei meu doutorado em 2002 na Universidade da Califórnia em San Diego, meu departamento, o de Química, já se orgulhava de uma técnica que começava a revolucionar a biologia: as proteínas fluorescentes, originalmente descobertas numa espécie de água-viva bioluminescente. Roger Tsien, prata da casa, era um dos pioneiros da tecnologia. As lindas imagens coloridas mostrando detalhes nunca vistos de processos celulares eram cada vez mais comuns nos artigos científicos e a mídia se divertia com imagens de animais fluorescentes. Pela primeira vez era possível observar o que ocorria dentro de uma célula viva em tempo real, sem perturbá-la.

Mais tarde, em 2008, veio o esperado prêmio Nobel, com Tsien entre os três ganhadores. No meio do entusiasmo gerado pela conquista, viemos a conhecer a fantástica história humana por trás dessa descoberta, sempre repetida nas palestras, que mostra como o processo científico pode ser cruel com os pesquisadores. Entre os três agraciados havia uma grande ausência. Douglas Prasher, o cientista que havia clonado o primeiro gene de uma proteína fluorescente havia sumido do meio acadêmico. Por ocasião do prêmio, foi encontrado trabalhando como motorista de uma van para uma concessionária de automóveis no interior do Alabama.

Acima: imagem de microscopia usando proteínas fluorescentes para mostrar detalhes da divisão celular. Abaixo: ratos geneticamente modificados para expressar proteínas fluorescentes (e ratos normais como comparação).

Estudiosos da biologia celular sempre se utilizaram de corantes para enxergar o interior das células (geralmente transparente), identificando substâncias coloridas que aderem a determinadas partes da célula para permitir a identificação de organelas. No entanto, essas técnicas são invasivas, requerendo que as células sejam fixadas e tratadas com substâncias geralmente nocivas, causando a sua morte. Células vivas estão sempre ativas, interagindo com seus arredores e mudando sua composição conforme necessário.

Toda essa atividade das células resulta da expressão de genes, resultando nas proteínas correspondentes que cumprem os mais diversos papéis na organização da célula. Durante as décadas de 70 e 80, cientistas aprenderam a manipular os genes das células, mas determinar a expressão genética ainda era um processo complicado. Até a década de 90, a maneira mais comum ainda envolvia a extração do citoplasma de toda uma cultura de células para se medir a atividade de um gene num determinado momento. Cientistas careciam de algo que pudessem enxergar dentro de células vivas, algo que pudessem associar à expressão gênica e que não alterasse o funcionamento normal da célula.

As proteínas fluorescentes chegaram para resolver esse problema. Podem ser produzidas pela própria célula, não necessitam de nenhuma substância adicional, não interferem com outros processos celulares e sua presença pode ser facilmente detectada. Essas proteínas absorvem luz em uma determinada frequência e emitem luz numa frequência característica diferente, assim como os pigmentos que brilham sob a luz negra. Desse modo, quanto mais proteína fluorescente a célula produzir, mais vai brilhar nessa frequência característica.

Para se medir a expressão de um gene, uma cópia do gene da proteína fluorescente é clonada junto ao gene a ser estudado, de maneira que esses genes são sempre expressados em conjunto. Quanto mais os genes são expressado, mais a célula brilha. Se o gene da proteína fluorescente é fundido ao gene da proteína sendo estudada, as proteínas são fisicamente ligadas, tornando possível  a determinação da sua localização dentro da célula e permitindo a visualização de estruturas. Novas aplicações continuam surgindo. Utilizando vírus modificados para produzir proteínas fluorescentes, cientistas estão mapeando as estruturas do cérebro. Variações dessas proteínas fluorescem apenas na presença de determinadas substâncias, podendo ser usadas como biossensores.

A água-viva bioluminescente Aequorea victoria, que emite uma luz esverdeada.

Essa idéia brilhante foi inspirada pelo brilho verde da água-viva Aequorea victoria, minuciosamente estudado desde a década de 60 pelo cientista japonês Osamu Shimomura (entre outros), do Instituto Oceanográfico de Woods Hole (EUA). Ele descobriu que se tratavam de duas proteínas, uma que emitia uma luz azul na presença de cálcio e outra que absorvia essa luz azul e emitia uma luz verde, chamada de "Proteína Fluorescente Verde" (GFP em inglês).

Já no final dos anos 80, Douglas Prasher chegou ao mesmo instituto com a ideia de utilizar a GFP em outros organismos como um marcador, pois era a única proteína então conhecida que brilhava por si só, sem necessitar de outras moléculas. Ele descobriu e clonou o gene responsável por produzir essa proteína, e se pôs a tentar conseguir financiamento para desenvolver o uso da GFP. Mas esse projeto era considerado de alto risco na época, e esse financiamento nunca veio. Prasher, cada vez mais isolado e desapontado com a falta de interesse em sua pesquisa, decidiu abandonar a ciência. Em seu último ato, mandou o gene clonado da GFP aos poucos cientistas que haviam mostrado interesse em sua descoberta.

Esquerda: Capa da revista Science mostrando o uso de proteínas fluorescentes na medição da expressão gênica em vermes. Direita: O pôr do sol de La Jolla, pintado numa placa de Petri usando bactérias expressando proteínas fluorescentes de cores diferentes (no detalhe abaixo).

Martin Chalfie, da Universidade de Columbia, conseguiu introduzir a GFP e medir expressão gênica em bactérias e pequenos vermes. Enquanto isso, Roger Tsien desenvolveu diversas variações da proteína, mais brilhantes e em várias cores diferentes, permitindo a observação de vários processos simultâneos nas células. Shimomura, Chalfie e Tsien acabaram dividindo o prêmio Nobel (apenas 3 são permitidos), enquanto Prasher passou por vários empregos até chegar à concessionária da Toyota.

00Quando contactado, se disse feliz pelo fato de que sua pesquisa não tinha sido em vão, e por seus colegas sempre lhe darem o devido crédito. Atendeu a cerimônia do prêmio a convite de Chalfie e Tsien. Após alguns anos, aceitou o convite de Tsien para trabalhar em seu laboratório, o que fez até a morte de Tsien em 2016. Felizmente, Prasher teve seu projeto resgatado após morrer na praia como cientista, algo raro para a grande maioria dos pesquisadores que ficam pelo caminho com suas carreiras interrompidas.

 

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.