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Para onde o mundo vai

Catálogo de células humanas permite personalização de tratamentos médicos

Mônica Matsumoto

26/04/2018 04h00

Por Edroaldo Lummertz da Rocha

Mais de 300 anos se passaram desde a primeira descrição de células vivas, realizada por Leeuwenhoek. Ainda assim, nós ainda não possuímos um catálogo completo de todas as células presentes em nosso organismo e tampouco sabemos exatamente as funções que elas desempenham. Para iniciar esta ambiciosa e complexa tarefa, um esforço internacional liderado pelos grupos de Aviv Regev do Instituto Broad de Harvard e MIT (EUA) e Sarah Teichmann do Welcome Sanger Institute (Inglaterra) foi oficialmente lançado em um comentário na revista Nature no final de 2017.

É um dos empreendimentos científicos mais importantes desde o sequenciamento do genoma humano nos anos 2000, envolvendo um esforço colaborativo por cientistas do mundo inteiro. Neste projeto, denominado "The Human Cell Atlas" (O Atlas de Células Humanas), busca-se catalogar todas as células de cada um de nossos tecidos e órgãos no estado saudável. Com este atlas em mãos, nós seremos capazes de estudar doenças com uma resolução sem precedentes e criar tratamentos mais eficientes para doenças como o câncer, Alzheimer, diabetes, aterosclerose, osteoporose e muitas outras.

Hoje em dia, estima-se que existam em torno de 200 a 300 tipos de células distintos em nosso organismo, mas esse número poder ser muito maior, pois muito pouco se sabe sobre os respectivos subtipos, suas funções biológicas e sua importância para o funcionamento normal do organismo, assim como suas contribuições durante o surgimento de doenças. Órgãos e tecidos são constituídos por uma variedade de tipos celulares, incluindo células-tronco e células especializadas (como os neurônios no cérebro ou células do sistema imunológico, que estão presentes em todos os nossos tecidos). A coexistência desta variedade de células define verdadeiros ecossistemas, os quais são responsáveis pelo funcionamento adequado de nossos órgãos e tecidos.

E essa diversidade ainda vai além desse tipos celulares mais gerais, embarcando diversos subtipos. Existem diversos subtipos de neurônios especializados em funções específicas, por exemplo. Na medula óssea, células-tronco do sangue se diferenciam em glóbulos vermelhos, células T, células B e uma variedade de outros tipos, gerando uma diversidade surpreendente de células que são responsáveis pelo transporte de oxigênio e o estabelecimento de respostas imunológicas, para citar alguns exemplos.

Porém, como identificar e caracterizar cada célula em um tecido? O dogma central da biologia molecular diz que o DNA produz RNA que então produz as proteínas. Como o DNA é essencialmente o mesmo em cada célula e o conjunto global de proteínas expressos em uma única célula ainda não pode ser quantificado, a maioria das tecnologias atuais busca quantificar as moléculas de RNA nas células. Como o RNA de diferentes tipos celulares tende a ser distinto, pesquisadores geralmente utilizam o RNA como ponto de partida para definir identidade celular. Por exemplo, o conjunto de moléculas de RNA que um neurônio expressa (chamado transcriptoma) é diferente daquele de uma célula muscular cardíaca. Portanto, o transcriptoma ajuda a identificar a identidade e a função de cada célula, como ilustrado por nosso grupo e outros.

Novos desenvolvimentos tecnológicos na área de sequenciamento de RNA com resolução celular (single-cell RNA sequencing, ou scRNA-seq) já permitem a quantificação do transcriptoma de uma única célula. Portanto, ao coletar as células de um tecido e quantificar os seus transcriptomas, hoje é possível determinar a diversidade de tipos celulares naquele tecido e caracterizar a identidade e função de cada célula que constitui o ecossistema celular em estudo.

Estas tecnologias tem permitido a identificação de novos tipos celulares, assim como as transições que estas células realizam quando se diferenciam. No câncer, estas tecnologias e novos métodos computacionais têm possibilitado a caracterização e compreensão sem precedentes do complexo ecossistema tumoral e auxiliarão na identificação de células que conferem resistência a quimioterapia, induzem imunossupressão ou atuam como células-tronco tumorais. No Alzheimer, estas novas metodologias possibilitaram a identificação de um subtipo de célula imune no cérebro que confere um efeito protetor, reduzindo a neurodegeneração.

Um catálogo das células humanas serve como referência a partir da qual os pesquisadores trabalhando com doenças específicas poderão realizar novas descobertas. E o mais importante: a área de biologia de sistemas com resolução celular possibilitará o desenvolvimento de terapias mais personalizadas e adequadas para cada paciente por meio da caracterização completa do tecido doente, e a identificação de populações celulares clinicamente relevantes. Um dos grandes desafios atuais é adequar o tratamento do paciente a características únicas de sua doença. A informação detalhada fornecida por estes desenvolvimentos tecnológicos recentes, incluindo os métodos computacionais necessários para analisar estes dados complexos, terá um papel importante no desenvolvimento de terapias elaboradas para cada paciente.

A criação de um atlas catalogando os tipos de células em um tecido representa um grande avanço para a medicina e a pesquisa básica em biologia molecular e celular. O detalhamento das características das células saudáveis fornecerá a referência necessária para compreender como a identidade de cada tipo de célula é alterada durante o desenvolvimento de doenças e fornecerá oportunidades terapêuticas únicas. Embora inúmeros desafios ainda precisem ser superados, a medicina do futuro dependerá cada vez mais do trabalho realizado pelos cientistas que trabalham duro para entender os mínimos detalhes das causas moleculares das doenças!

Sobre o autor: Edroaldo Lummertz da Rocha é bacharel em Ciência da Computação pela UNESC e doutor em Ciência e Engenharia de Materiais pela UFSC, com período sanduíche em Harvard. Atualmente realiza pós-doutorado no Boston Children's Hospital/Harvard Medical School e no Instituto Wyss da Universidade de Harvard, em Boston, nos Estados Unidos. Edroaldo trabalha com biologia sistêmica com resolução celular, desenvolvendo novas estratégias computacionais e experimentais para caracterizar e compreender a dinâmica de ecossistemas biológicos complexos, com foco atual em leucemia infantil e o surgimento de células-tronco do sangue.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.