Reescrevendo o DNA: nova técnica gera corrida por Prêmio Nobel e patentes
Nas últimas décadas, desde que Watson, Crick, Franklin e Wilkins decifraram a estrutura do DNA, nos acostumamos a misturar o conceito de DNA com o da nossa própria identidade. Nossa altura, sexo, cor dos olhos, origem dos nossos antepassados, predisposição a doenças, testes de paternidade, tudo está escrito na seqüência de letrinhas do DNA contido dentro de cada uma de nossas células. Contudo, avanços recentes apontam para um futuro onde não estaremos mais restringidos pelo DNA que herdamos de nossos pais.
Essas novas tecnologias, baseadas no conceito de CRISPR, permitem reescrever o DNA de organismos vivos e vêm revolucionando a biologia. É o resultado de toda uma epopeia científica iniciada humildemente nos anos 90, e que recentemente resultou numa corrida por patentes importantes envolvendo os pesos-pesados do ramo, cheia de intrigas e sob a perspectiva de um prêmio Nobel quase certo.
Tudo começou quando uma comunidade de microbiólogos, longe do glamour dos grandes centros, começou a investigar a fundo uma curiosidade observada em várias bactérias: uma série de seqüências palindrômicas de DNA (iguais se lidas de trás pra frente), separadas por intervalos regulares. Francisco Mojica, de Alicante, na Espanha, as chamou de Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas (CRISPR na sigla em inglês).
Ao longo da próxima década foi-se percebendo que se tratava de um "sistema imunológico" que bactérias usam para se defender do ataque de vírus (sim, elas também sofrem com isso). Células bacterianas que são capazes de sobreviver a uma infecção guardam um pedaço do DNA do vírus entre as tais seqüências palindrômicas, para que possam reconhecê-lo numa infecção futura. Quando a célula é infectada pelo mesmo vírus novamente, ela usa esses pedaços de DNA viral guardados para guiar uma enzima que caça e destrói os vírus pelo interior da célula. Essa enzima procura pela mesma sequência de DNA que lhe é fornecida, e quando encontra essa seqüência corta o DNA ali mesmo, destruindo o vírus.
A descoberta desse mecanismo chamou a atenção de outros grupos pelo seu potencial como uma ferramenta de edição de DNA: agora é possível reconhecer uma certa seqüência e cortar o DNA num local preciso! Usando as ferramentas que a célula possui para reconstruir o DNA partido, novas seqüência de DNA podem ser incorporada no lugar da quebra, permitindo a reconstrução de genes específicos. Os primeiros esforços para desenvolver essa técnica surgiram de uma colaboração entre os grupos de Jennifer Doudna, em Berkeley na Califórnia, e Emmanuelle Charpentier, que passou por várias universidades da Europa. Eles focaram em redesenhar a enzima Cas9, encontrada no sistema de CRISPR da bactéria S. pyogenes, e conseguiram chegar numa única enzima que corta o DNA em qualquer seqüência que lhe seja fornecida como guia.
Outro grupo de colaboradores na Lituânia mostrou que a enzima Cas9 da bactéria S. thermophilus também pode ser reprogramada com o mesmo fim. Pouco depois, os grupos de Feng Zhang e George Church, no Instituto Broad de Harvard e MIT, conseguiram usar esse mesmo sistema CRISPR-Cas9 para editar genes em células humanas.
Esses resultados provocaram um terremoto na comunidade científica no começo de 2016. Uma explosão de novas técnicas e uma briga ferrenha entre os grupos de Berkeley e do Instituto Broad, situados em lados opostos dos EUA, para decidir quem colhe os louros (e as valiosas patentes) da nova tecnologia. Nessa época, eu terminava meu pós-doutorado em Boston, do lado do Broad, e certo dia fomos surpreendidos com uma verdadeira guerra no Twitter envolvendo vários cientistas famosos. Eric Lander, Diretor do Broad, estrela do antigo Projeto Genoma e conselheiro de Obama, havia publicado um artigo sobe a história do CRISPR na prestigiosa revista Cell onde puxava a sardinha para seus protegidos, despertando a ira de seus colegas da Califórnia. A reação foi imediata e a briga se tornou pública, tomando as redes sociais. Até agora a disputa pelas patentes ainda corre pelas agências dos EUA e da Europa e o cisma na comunidade ainda não cicatrizou.
Nesse meio-tempo as novas técnicas continuam surgindo. Novos sistemas CRISPR são cada vez mais precisos, minimizando as quebras de DNA em locais errados. Como esses sistemas podem ser incorporados ao genoma das células, mosquitos geneticamente modificados contra a transmissão de doenças podem espalhar essas modificações pela natureza para controlar epidemias como malária, zika e febre amarela. Na luta contra o câncer, vários tratamentos se mostram promissores. Células do sistema imunológico são retiradas de um paciente, reprogramadas para atacar células cancerígenas e depois reintroduzidas na corrente sangüínea, percorrendo o corpo atrás de focos da doença por menores que sejam. Esses tratamentos são capazes de eliminar tumores em modelos animais até mesmo com a doença já em estado avançado, e já estão em fase de teste em seres humanos.
Se avanços significativos na área da saúde podem ser esperados para um futuro próximo, quem deseja usar essas tecnologias para mudar a cor dos próprios olhos vai ter que esperar mais um pouco. Cientistas chineses, num estudo controverso, até tentaram usar CRISPR para corrigir o DNA de embriões humanos inviáveis por conter mutações genéticas, mas a técnica não conseguiu alterar todas as células e como efeito colateral ainda danificou outros genes. Por ora, a comunidade científica em geral se mostra contra o uso dessa tecnologia em seres humanos, pelo menos até que a técnica se refine e que o assunto seja discutido por governos e pela sociedade. Mas os primeiros passos foram dados, e a pesquisa continua a todo vapor. Não se surpreenda se algum dia as árvores genealógicas se tornarem obsoletas!
Sobre os autores
Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.
Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.
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