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Para onde o mundo vai

O que a OMS tem feito de concreto na luta contra a pandemia de covid-19?

Shridhar Jayanthi

30/04/2020 04h00

Sede da Organização Mundial da Saúde em Genebra (Yann Forget /Wikimedia Commons)

Durante essa pandemia de covid-19, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem aparecido com uma frequência enorme no nosso cotidiano, tanto no noticiário quanto nos memes espalhados nos grupos sociais do WhatsApp. A OMS aparece como autoridade na recomendação sobre tratamentos e protocolos para testes. A OMS também dá diretrizes para o uso adequado de dados vindos de testes ou para desenho de políticas públicas baseadas em dados epidemiológicos. O chanceler Ernesto Araújo chegou até a, aparentemente, atribuir à OMS um papel num plano de dominação mundial nos moldes sugeridos por Slavoj Zizek.

Na "cúpula do trovão" epistêmica que se transformou a cultura moderna, a OMS ora aparenta ser um braço de um governo mundial, um grande títere interferindo nas soberanias nacionais, ora aparenta ser o inquestionável paladino da ciência, a fonte única do conhecimento. Para fugir desses polos e ter uma noção melhor do papel da OMS, vale a pena olhar para o que ela tem feito de concreto nessa pandemia.

Uma das responsabilidades da OMS é o monitoramento de riscos sanitários e a divulgação de notas para autoridades sanitárias do mundo inteiro. Por exemplo, a OMS mantém um canal de alertas de emergências para preparação de respostas. Foi por esse canal, por exemplo, que a OMS divulgou a primeira notificação de um novo tipo de pneumonia reportada pelo escritório chinês em 31 de dezembro de 2019.

Essa nota pública, emitida dia 5 de janeiro, relata um foco de pneumonia com 44 pacientes, 11 em estado grave. A nota também relata que as autoridades locais fecharam um mercado em conexão com esse foco, mas que as equipes chinesas não encontraram transmissão entre humanos.

Na época, o agente – o SARS-CoV-2 – ainda era desconhecido. Foi só em 12 de janeiro que a OMS divulgou uma nota pública revelando a existência do SARS-CoV-2 e avisando que a sequência genética estava disponível para desenvolvimento de testes diagnósticos. Finalmente, no dia 22 de janeiro, a OMS relatou que enviara uma delegação para Wuhan e que essa delegação encontrou indícios fortes de transmissão humana, o que levou a uma monitoração epidemiológica mais intensa e, por fim, à declaração de que a covid-19 se trata de uma pandemia.

A outra responsabilidade da OMS é dar recomendações para os países membros sobre como responder a crises sanitárias desse porte. O relatório da missão da OMS à China, entre os dias 16 e 24 de fevereiro, contém uma série de recomendações para responder a uma crise de covid-19.

Com base na resposta chinesa à epidemia, a OMS recomendou que as ferramentas mais adequadas para controle seriam medidas "não farmacológicas" como programas de higiene pública, distanciamento social, identificação e quarentena de pessoas infectadas, dado que os candidatos a remédio identificados precisariam de mais estudos. Ainda como parte dessa missão, a OMS também mantém um documento continuamente atualizado com recomendações estratégicas para os países controlarem a doença.

Além das recomendações políticas, a OMS também tem um papel importantíssimo na coordenação dos técnicos da área. Por exemplo, a OMS divulgou, ainda em janeiro, o protocolo de real-time RT-PCR para teste de covid-19 utilizado no hospital alemão Charité. Esse protocolo acabou sendo utilizado em quase todos os países do mundo, incluindo no Brasil. Curiosamente, os Estados Unidos desenvolveram seu próprio protocolo, através do CDC e é possível que esse processo causou o déficit de testes no país durante o mês de fevereiro.

A OMS também está coordenando os esforços coletivos na busca por tratamentos através do estudo "Solidarity". Esse estudo utiliza a maior escala possível pela coordenação internacional para testar vários medicamentos simultaneamente e descobrir estatisticamente quais os remédios que funcionam e quais não funcionam. Através desse estudo, iremos descobrir rapidamente a eficácia real de medicamentos como a cloroquina, o remdesivir ou interferon beta 1a. A OMS também providencia um protocolo para conduta médica, importantíssimo para tratamento em países onde as autoridades sanitárias não têm condições de fazer o seu próprio protocolo.

Mas nem tudo são flores e a OMS, como uma agência mundial multilateral, também tem que lidar com problemas políticos que emergem de questões internacionais que fogem do problema sanitário. O jornal britânico The Guardian relatou, por exemplo, que no dia 22 de fevereiro a OMS organizou uma reunião interna para resolver como responder à descoberta de que a covid-19 era transmissível entre humanos.

O problema é que havia incerteza sobre a intensidade de contato necessária para a transmissão. Hoje sabemos que a covid-19 é incrivelmente contagiosa, mas, na época, havia uma suspeita de que a transmissão estava limitada a recintos fechados. Foi preciso uma semana – e a notícia de transmissão comunitária em vários centros – para que a OMS alterasse sua recomendação.

Não é possível saber ainda o quanto que a indecisão se deve a possíveis pressões políticas, mas o que se sabe é que o comitê formado por China, EUA, Tailândia, Rússia, França, Coreia do Sul, Canadá, Japão, Holanda, Austrália, Senegal, Cingapura, Arábia Saudita, Suécia e Nova Zelândia estava rachado ao meio.  Afora isso, é notável a ausência de Taiwan nesse grupo, dado que Taiwan foi um dos primeiros países a relatar covid-19.

Politicagem interna pode também ser a origem do controverso tweet de 14 de janeiro [veja acima] dizendo que não há indícios claros de transmissão entre humanos de covid-19. Afinal de contas, no mesmo dia, a OMS declarava em entrevista coletiva que havia sim indícios de transmissão dentro de famílias, chegando até a comentar sobre a possibilidade de um "super spreader".

A OMS também depende da boa fé dos países membros na criação de respostas. No caso da covid-19, relatos de que a China não foi transparente em suas notificações e a falta de informações de qualidade impede uma resposta mais adequada por parte da OMS.

Ainda que esses eventos sejam apenas erros sem malícia alguma – afinal de contas a covid-19 é uma crise complexa do tipo que causa erros – a verdade é que, para entidades mundiais multilaterais, pressões políticas são contingências inevitáveis que devem ser contornadas. Diante do autoritarismo notório da China, é bem provável que as concessões da OMS àquele governo são o preço a ser pago pela colaboração. Um mundo onda a OMS tem acesso à China é melhor que um mundo em que a China é uma imensa Coreia do Norte. Mesmo com os solavancos, a resposta mundial ao covid-19 é muito melhor por causa da ação da OMS na divulgação de protocolos e relatórios e na coordenação de estudos técnicos.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.