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Existe uma versão segura do amianto? Não estou convencido, eis a razão

Shridhar Jayanthi

09/05/2019 04h00

Mina de amianto

A Sama, uma mineradora brasileira, é dona da maior mina de amianto brasileira, no município de Minaçu (GO). As operações de mineração estão paradas por conta de decisões judiciais proibindo sua mineração. O caso ganhou destaque com a visita de políticos goianos à mineradora, numa aparente tentativa de facilitar a liberação de suas atividades por meio de pressão política.

O amianto é um material com propriedades estruturais bastante úteis pra construção civil. É um mineral fibroso, com propriedades boas de dureza, isolamento térmico, tolerante a altas temperaturas e capaz de resistir a ataques químicos.

O amianto também é extremamente versátil, por conta do arranjo fibroso. Vários produtos como caixas d'água, telhas, dutos, forração pra construção civil e para veículos são feitos com amianto. Seu uso data desde a antiguidade, quando há relatos de tecidos à prova de fogo feitos com as fibras de amianto! É um material formidável, não fosse pelos problemas de saúde que ele causa.

Foi ao longo do século passado que descobriu-se que o amianto é responsável por doenças respiratórias gravíssimas. Há relatos de uma delas, a asbestose, em operários e mineradores já no início do século XIX e ao menos um estudo dos anos 40 atribuindo ao amianto câncer de pulmão em operários que lidavam com o material. A literatura científica foi se acumulando e demonstrando cabalmente que o amianto, ou mais especificamente seu pó, é responsável por asbestose, câncer de pulmão e mesotelioma (um tipo de câncer). Mais de 80% de todos os casos de mesotelioma, aliás, decorrem de dano pulmonar causado por amianto, de acordo com esse estudo epidemiológico!

Com as descobertas, vieram as proibições. A Islândia foi a pioneira em 1983 e, hoje em dia, seu uso é banido em toda a União Europeia. Os Estados Unidos iniciaram a regulação em 1973 e chegaram a banir todo uso de amianto em 1989. Por questões constitucionais, a proibição do amianto foi revogada pela Justiça americana, mas o fato de que o amianto causa doenças é tão consagrado que o uso de amianto por qualquer empresa cria um risco financeiro enorme.

Há, inclusive, tratativas para restringir o uso de amianto no comércio internacional, usando a Convenção de Roterdã sobre elementos tóxicos. Os gráficos abaixo, extraídos de um estudo do governo americano, dão uma noção do nível de redução no uso do amianto. Atente que houve até mudança de escalas entre o primeiro e o segundo gráfico –antes considera 2.500 casos como nível máximo, depois isso cai para 700– tamanha a redução no uso após a regulação no mundo.

Casos de consumo de amianto em diversos países, ao longo dos períodos de 1920 a 1990, e de 1995 a 2003

Como então, diante de tamanha evidência da toxicidade do amianto, países como a Rússia e os políticos que visitaram Goiás insistem em remover barreiras à exploração comercial do material? A motivação mais cínica é evidente: o amianto é extremamente útil e a atividade de mineração movimenta uma quantia enorme do comércio. Mas mesmo o maior cinismo precisa de algum embasamento científico, ainda que controverso.

O amianto pode ter duas formas distintas: o crisotila (ou serpentina) e o anfíbola. Alguns pesquisadores creem que o amianto crisotila é seguro e que o risco à saúde é específico ao amianto anfíbola. A divergência vem do modelo molecular da patologia. Parte do processo patológico nas doenças causadas pelo amianto vem da forma como os macrófagos no pulmão (células humanas que fazem "faxina") interagem com a poeira dessa fibra mineral.

Devido às propriedades do amianto, os macrófagos são incapazes de eliminá-lo e, como resposta, geram um processo inflamatório que causa estresse oxidativo e, conseqüentemente, mesotelioma e asbestose. De acordo com os defensores modernos do uso de amianto, esse processo é atenuado com o tipo crisotila. Essa afirmação é bastante controversa (se minha opinião interessa ao leitor, eu não fui convencido de que o crisotila é seguro). O próprio artigo citado acima foi contestado contundentemente por outro artigo.

Uma outra fonte de confusão vem do fato de que a imensa maioria de nós cresceu rodeado de amianto. Como é possível que o amianto seja tão danoso se gerações de pessoas até bebem água de caixa d'água de amianto? O que acontece é que o amianto após processado é, de fato, seguro. São as fibras soltas dele que, ao serem inaladas, causam dano ao pulmão. É por isso que uma parede com forro de amianto não causa risco nenhum a um residente, mas uma reforma de uma parede com esse material põe um pedreiro em uma situação de risco enorme!

E é por isso que, dentre as atividades que põe os trabalhadores em risco, a mineração é a que tem potencial mais alto para a saúde. É por isso que, na opinião desse autor, é preciso manter a proibição ao amianto, mesmo sabendo da perda econômica sofrida pela comunidade e das empresas interessadas na exploração.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.