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Para onde o mundo vai

Não é o planeta que precisa ser salvo: somos nós

Mônica Matsumoto

07/02/2019 04h00

Por: Suzane Simões de Sá

 

A nossa pesquisa era mais uma pequena peça de um enorme quebra-cabeça que liga as atividades humanas aos efeitos negativos na qualidade do ar e às mudanças do clima. Dentro de um container instalado na Amazônia, rodeada por instrumentos por todos os lados, eu não sabia se era terça-feira ou sábado. É que para a natureza não existe dia de folga. E se quiséssemos estudar a natureza em tempo real, eu, meus colegas e nossos instrumentos tínhamos que ser incansáveis como ela. Em horas de frustração ou cansaço, eu buscava dentro de mim a minha motivação mais nobre como jovem cientista: estávamos fazendo algo para "salvar o planeta".

Figura 1: "Blue marble" (mármore azul, no português), é como é conhecida a primeira foto tirada da Terra no espaço durante a missão Apollo 17, em 1972. Fonte: https://www.nasa.gov/content/blue-marble-image-of-the-earth-from-apollo-17

 

A saga dos cientistas e o estado da ciência

O estudo da nossa atmosfera é hoje feito com a ajuda de muita tecnologia. Até na Amazônia, que é um dos lugares de mais difícil acesso do mundo (mas de grande interesse), cientistas encontram meios para levar e usar seus equipamentos mais avançados. Eles fazem medidas de diversos tipos no chão, em aviões, em torres e, mais recentemente, até em drones. No estudo atual com drones, por exemplo, esses robôs voadores se tornam especialistas em "cheirar" o ambiente, usando sensores químicos para analisar o ar amazônico.

Figura 2: Várias plataformas e instrumentos têm sido usados para estudos da Amazônia. Na esquerda, foto de um estudo com drones em uma torre (fonte: Commercial UAV News); na direita, foto de um estudo com vários instrumentos dentro de um container (fonte: arquivo pessoal da autora).

Por décadas, milhares de cientistas têm se embrenhado nas partes de mais difícil acesso do planeta para coletar dados sobre a atmosfera. Outros milhares têm feito experimentos em laboratório ou têm se debruçado horas a fio sobre equações matemáticas e computadores para desenvolver o que chamamos de modelos para representar a atmosfera e o clima, e assim fazer previsões sobre o futuro.

Vários estudos importantíssimos foram feitos há mais de meio século. Em 1967, os cientistas Syukuro Wanabe e Richard Wetherald foram pioneiros ao desenvolver um modelo para o clima e demonstrar o aumento da temperatura da Terra com o aumento da concentração de CO2 no ar. Uma década depois, observações feitas por Charles Keeling e seus colegas no observatório de Mauna Loa, no Hawaii, iriam se tornar o que pode ser considerado o estudo mais icônico sobre o tema. Eles mediram a concentração de CO2 na atmosfera por vários anos, demonstrando que ela estava crescendo a uma taxa alarmante. Essas observações continuam até hoje, e a "curva Keeling" é uma referência clássica conhecida mundialmente.

Figura 3: A curva Keeling mostra a concentração de CO2 (em partes por milhão) na atmosfera, medidas até hoje no laboratório de Mauna Loa, no Havaí. Fonte: https://www.esrl.noaa.gov/gmd/ccgg/trends/full.html

As atividades humanas (queima de combustíveis fósseis, desmatamento, etc.) nos últimos séculos têm causado um aumento sem precedentes na concentração de CO2 e outros gases de efeito estufa na atmosfera, o que leva ao aquecimento global. As mudanças climáticas são então consequência do aquecimento global, e vários estudos mostram que elas incluem o aumento do nível do mar, a acidificação dos oceanos, o aumento da frequência e intensidade de eventos extremos como furacões, tempestades e secas, ondas de calor, dentre outros.

        Que a temperatura do planeta está aumentando, é fato. E que esse aquecimento é causado pelas atividades humanas, é consenso: 97% dos cientistas da área concordam, posição que é endossada por várias agências internacionais. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês), composto pelas maiores autoridades internacionais no tema, afirma em um relatório recente que o planeta já está 1°C mais quente do que no período de 1850-1900, e estima que vamos atingir 1.5°C até o meio deste século.

A produção de dúvida sobre a ciência e a percepção do público

Apesar disso, você já pode ter pensado que ainda há um debate sobre a real existência do aquecimento global. Nada mais compreensível, já que uma atenção desproporcional é dada aos "negadores" (deniers, no inglês) do aquecimento global na mídia. Você já viu um debate em que 97 cientistas se amontoavam em um lado da bancada para debater com 3 solitários negadores do lado oposto? Apesar de parecer engraçado, esse seria o único debate realmente fiel à realidade. Um debate na proporção de um para um, como normalmente é feito, transmite uma impressão enganosa sobre o estado da ciência. E esse é apenas um exemplo.

No livro Merchants of Doubt de Naomi Oreskes, professora do Departamento de História da Ciência de Harvard, e Erik Conway, historiador da NASA (e no documentário de mesmo nome), os autores expõem as táticas por trás de campanhas de distorção dos fatos sobre o aquecimento global. Orquestrada por um grupo relativamente pequeno de pessoas mas com enorme influência, a estratégia se materializa como uma espécie de fake news da ciência. Sem muito spoiler das obras, o ponto é que, há décadas, mudanças climáticas deixaram de ser um tópico de questionamento científico para ser um tópico de debate político e de regulamentação.

 

Para onde a gente vai?

Atualmente, eu reformulo a expressão que costumava usar como auto-motivação. O planeta não precisa ser salvo: somos nós e a vida como a conhecemos que precisam. Pode parecer sutil, mas essa reformulação evidencia o que está realmente em risco. Qualquer que seja o dano que causamos ao clima, a Terra continua a rodar, a vida nela se transforma, e os maiores prejudicados somos nós mesmos.

A solução é clara: temos que zerar nossas emissões de carbono. Mas o caminho não é tão claro: adaptar todo um sistema energético e econômico não é simples apesar de possível, e a situação se complica ainda mais quando a ciência, que deveria ser utilizada para guiar políticas públicas e iniciativas privadas nesse sentido, é ofuscada e até mesmo atacada.

Como eu aprendi no dia-a-dia da minha pesquisa de campo, com a natureza não há descanso, e é no seu ritmo implacável que as mudanças climáticas causadas por nós já estão acontecendo. A pergunta que temos que manter em mente não é se a Terra vai se recuperar das sequelas climáticas que estamos deixando, mas se nós, enquanto civilizações, estaremos aqui pra contar a História quando isso acontecer.

Sobre a autora: Suzane Simões de Sá é Engenharia Química formada pela Universidade Federal de Minas Gerais e possui PhD em Ciência e Engenharia Ambiental pela Universidade de Harvard (EUA), onde atualmente é pós-doutoranda. Suzane faz pesquisa na área de química atmosférica, buscando entender como as emissões de atividades humanas afetam o material particulado no ar, com interesse especial na região Amazônica.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.