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Direitos humanos para bots direitos? Como a lei deve enquadrar robôs?

Shridhar Jayanthi

24/01/2019 04h00

Entre os vários desafios enfrentados pelas democracia modernas, o uso do direcionamento automático (targeting) de informações por bots é uma zona interessante de conflito.

Esse fenômeno ganhou destaque depois das eleições nos EUA, de 2016, quando, segundo os serviços de inteligência norte-americanos, a Rússia teria utilizado redes de bots para interferir no debate político americano com intuito de semear discórdia no país. No Brasil, a FGV fez um trabalho interessantíssimo para monitorar a presença de bots nas eleições de 2018.

Diante da influência deles no processo democrático, há um ímpeto legislativo de proibi-los. Esse tipo de legislação traz uma questão curiosa sobre direitos humanos e civis: um bot (ainda) não é uma entidade independente, ela opera sob o comando de uma pessoa. Em que medida, então, legislação controlando o alcance ou o uso de bots interfere com o direitos civis de liberdade de expressão do dono do bot?

Antes de entrar no assunto, é importante definir exatamente o que é e o que não é um bot.

Aí já temos uma dificuldade. O impulso inicial é definir o bot como todo agente autônomo programado para fazer propagação massiva de mensagens. Só que essa definição alcança coisas como malas diretas com santinhos ou a Kombi com caixa de som no teto tocando a musiquinha dos candidatos.

Essas práticas podem ser até irritantes, mas são relativamente inofensivas e, para candidatos com pouca presença na mídia, necessárias.

Uma definição um pouco mais sutil e, a meu ver mais útil, ligaria o uso de fontes de dados privadas ou inteligência artificial para automação de direcionamento. Esse tipo de sutileza, porém, não é fácil de legislar e os modelos adotados têm focado a plataforma de difusão em si, não no formato ou na mensagem.

Ou seja: bots restritos são só os no Facebook, Whatsapp, Twitter e outras mídias sociais.

Nos Estados Unidos, a questão de liberdade de expressão para bots é cabeludíssima, por conta das garantias constitucionais amplas. Casos como o dos agentes russos podem ser atacados como problemas de espionagem e contra-espionagem, na seara do direito público internacional.

Mas e se candidatos ou apoiadores, cidadão americanos plenos, resolverem utilizar esse tipo de tática? Quando uma pessoa contrata ou programa sua rede de bots, a liberdade de expressão da pessoa é aplicável?  

O consenso no sistema norte-americano é que, contanto que as mensagens indiquem a origem do financiamento, todo tipo de propaganda eleitoral é válida. Há a possibilidade de algum controle no fato de que os veículos privados americanos têm liberdade de recusar veiculação de propagandas, ao contrário do Brasil onde há o horário eleitoral. Mas para esse tipo de regulação ser eficaz, plataformas como Facebook teriam que jogar dinheiro fora, coisa extremamente improvável.

No Brasil, a solução pode ser um pouco mais fácil, uma vez que a nossa constituição condiciona a liberdade de expressão apenas para discurso não-anônimo. Portanto, uma lei pode exigir que bots que queiram a garantia da liberdade de expressão tenham que declarar quem é o cidadão por trás do discurso.

O problema de uma saída dessa natureza é que ela enfatiza os limites constitucionais do discurso anônimo no Brasil, coisa que está um pouco fora de moda por excelentes motivos.

O estado da Califórnia está propondo uma solução que se aproxima um pouco dessa ideia. Na legislação proposta, o estado criminaliza o uso de bots que fingem ser uma pessoa, anônima ou não, e imuniza qualquer discurso de um bot que declara ser um bot.

Dado o nível de liberdades americanas, mesmo essa solução pode estar sujeita a limites por causa da doutrina do compelled speech (que diz que o Estado não pode obrigar alguém a falar algo contra a sua vontade). De todo modo, esse tipo de legislação é mais atraente, porque, ao definir o uso de bots como fraude, foge do direito constitucional e entra no debate criminal.

Uma outra abordagem para essa questão é a da liberdade de imprensa. O Brasil não garante liberdade de expressão para anônimos, mas, por outro lado, dá garantias robustas de sigilo de fonte. Dessa forma, se alguém programasse um bot para replicar automaticamente mensagens recebidas em uma conta de email, o bot estaria efetivamente atuando como um jornalista e, portanto, ter direito ao sigilo de fonte!

Esse tipo de raciocínio também poderia servir para, por exemplo, bots acadêmicos declararem liberdade de cátedra e para bots financeiros se recusarem a explicitar seu código fonte por liberdade de pensamento!

Essa discussão toda é apenas um aquecimento para a complexidade legal que a expansão do uso de robôs trará.

Liberdade de expressão deve ser a única liberdade civil relevante para bots de internet. Mas e os robôs que atuarão no futuro? Outras liberdades como a liberdade de ir e vir, o direito a habeas corpus e ao devido processo legal, ou até mesmo a garantias contra discriminação podem muito bem virar questões de debate público nos próximos anos.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.