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Para onde o mundo vai

Futuro (e passado?) das eleições

Mônica Matsumoto

04/10/2018 04h00

Por: Shridhar Jayanthi

É impossível pensar em uma democracia sem pensar no instrumento que é quase seu sinônimo: o voto. É o voto que legitima o poder político dos órgãos governamentais como os parlamentos, o poder executivo e, indiretamente, o judiciário. Nas próximas semanas, o Brasil irá comparecer às urnas para escolher presidente, governadores, deputados e senadores. Mas apesar da sua importância para a democracia, o processo eleitoral é um rito extremamente complexo e caro. No Brasil, por exemplo, as eleições requerem uma infra-estrutura que permite receber quase 150 milhões de eleitores em todas as cidades do país, todos votando no mesmo dia. Além de tudo, os incentivos para fraudar o resultado eleitoral são imensos, dado o poder que resulta de uma vitória nas urnas. Um pesadelo logístico e de segurança.

A tecnologia tem sido usada para facilitar o processo, seja facilitando a logística, seja aumentando a segurança do voto. A urna eletrônica, apesar de ter sido horrivelmente implementada em algumas jurisdições, automatiza a contagem de votos e permite apuração em algumas horas. Ainda me lembro do tempo quando se levava dias para contar o resultado de uma prefeitura relativamente pequena como a de São José dos Campos-SP. Indo nessa direção de facilitar o processo, muitas propostas para o uso de blockchains nas eleições têm surgido. A idéia é utilizar uma infra-estrutura de blockchain transparente, auditável e conveniente para os eleitores. Não vou detalhar o funcionamento de blockchains – vou deixar o link da wikipedia – e para esse post, basta pensar que blockchain é uma tecnologia "mágica" que permite uma rede distribuída de processamento auditável e de armazenamento persistente, imutável e criptografado. Essa infra-estrutura, em tese, permitiria que cada eleitor pudesse verificar que seu voto foi computado e que auditores pudessem verificar que a tabulação está sendo feita corretamente, sem violar o sigilo do voto. Além disso, a infra-estrutura permitiria que o voto pudesse ser feito a partir de qualquer lugar, contanto que acompanhado de uma certidão digital do próprio eleitor. Esse artigo de Ryan Osgood faz um bom apanhado de algumas implementações, além de descrever bem a história de algumas vulnerabilidades mitigadas com o uso de blockchains.

Isso não é uma proposta distante. Neste ano já vimos alguns testes dessas infra-estruturas em algumas eleições. Recentemente, uma empresa suíça chamada Agora fez um teste em Serra Leoa, ensaiando a escala de um processo eleitoral. Já no estado norte-americano da Virgínia Ocidental, votos de membros das forças armadas serão computados usando blockchains, e até o momento já foram computados 75 mil votos. Esse serviço, implementado pela start-up Voatz, permite votos a partir de apps em telefones celulares. O sucesso de uma urna no celular pode trazer revoluções ainda mais intensas num futuro próximo, e há até mesmo propostas para implementar sistemas de democracia direta usando blockchains. O projeto do argentino Santiago Siri é criar uma blockchain para petições, plebiscitos e referendos, e não somente eleições. Um sistema desses poderia dar legitimidade democrática para órgãos supra-nacionais, evitando o colapso de confiança que pode levar até ao fracasso dessas organizações, como temos visto na União Européia e na ONU.

Mas há um custo social na adoção dessas tecnologias. Um deles é que, ao menos na compreensão contemporânea, a democracia pede acesso igual a todos os cidadãos. Um sistema de blockchains pode exigir uso de apps em celulares, acesso à internet ou sofisticação do eleitor com as ferramentas, o que pode ser impeditivo para pessoas de baixa renda ou baixa escolaridade. Esse impacto, inclusive, é explícito em propostas como a de Santiago Siri. No sistema de Siri, cada voto exige um cupom virtual, um token, que pode ser livremente comercializado. Como resultado, o voto pode ser livremente comprado ou vendido, resultando num sistema de voto censitário, onde o poder econômico pode ter efeito direto. A conveniência pode também criar vulnerabilidades práticas. É mais fácil exercer o cabresto num eleitor votando a partir de seu celular em casa ou no trabalho do que fazê-lo na sessão eleitoral, diante dos olhos dos mesários.

Um outro custo mais sutil é o custo de confiança por parte das tecnologias. Em um artigo curto,  Teogenes Moura e Alexandre Gomes da UNB discutiram a questão da importância da confiança do eleitor no processo eleitoral e o impacto do uso de blockchains. Essa confiança é definida pelos autores como a confiança de que o próprio voto será computado. Eu gosto muito dessa definição. Em última análise, é o senso de justiça do processo, a idéia de que a derrota foi em um processo competitivo justo, que cria espaço para a anuência e o consentimento dos indivíduos derrotados. Na opinião de Moura e Gomes, o uso de blockchains aumentaria a confiança no processo automatizado, uma vez que essa automatização traria uma forma de auditar os resultados.

A prestigiosa Academia Nacional de Ciências (NAS) norte-americana foi ainda mais longe na valorização da confiança no processo eleitoral. Na contra-mão do progresso tecnológico, a NAS recomenda o retorno aos votos em papel e rejeita categoricamente o uso de internet para qualquer voto. Na apresentação dos resultados, um dos autores, o presidente da Universidade de Columbia (NY) Lee Bollinger, até expressou sua surpresa ao perceber que o futuro do voto é um retorno a um passado recente. O relatório descobriu que as maiores vulnerabilidades do processo eleitoral vêm do desengajamento do eleitorado, e não da conveniência. Porém, o relatório não é contra o uso de tecnologia como um todo e apenas recomenda que qualquer urna eletrônica imprima uma cédula de papel com informações legíveis e verificáveis pelo eleitor. Dessa forma, o eleitor tem uma certeza visceral de que o que ele botou na urna – e o que vai ser computado – representa o desejo dele. A urna eletrônica sem comprovante não fornece essa satisfação: você vota e torce para máquina ter registrado sua escolha direito, em bits invisíveis.

O modelo recomendado no relatório da NAS é até parecido com o que foi especificado pela Reforma Eleitoral de 2015 brasileira, que acabou sendo revogada pelo STF, mas há uma diferença importante: o sistema recomendado pede que a máquina que imprima os votos seja distinta da máquina que contabiliza os votos. Já a lei revogada pedia uma máquina que meramente imprimisse cédulas a cada voto para uma eventual recontagem manual e o voto seria registrado pela mesma máquina que gerava as cédulas. Um outro tópico interessantíssimo é o do uso de amostragem para recontagens e auditorias. Esse processo poderia reduzir bastante o custo de recontagens – o grande temor de quem não sente saudades das cédulas de papel.

Fica aí evidente a importância de se avaliar o impacto psicológico e social de mudanças na urna eletrônica, para além das considerações mais práticas como custo e logística. A lambança que foi o andamento do artigo da Reforma Eleitoral regendo sobre o voto impresso – votada no legislativo, vetada no executivo, veto derrubado no legislativo, revogada no STF – contribuiu bastante para desconfiança de alguns eleitores e fica como exemplo. No fim das contas, é importante lembrar que o processo eleitoral não é apenas uma forma de descobrir quantos votos cada candidato tem: o voto é também um ritual periódico de exercício democrático e que cria no cidadão a confiança de que o novo governante é, em última análise, uma pessoa escolhida pelos seus pares.

Sobre o autor: Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (Ann Arbor) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele se dedica a patentes na área de manufatura elétrica, software, e equipamentos médicos. Antes de lidar com patentes, Shridhar teve passagens acadêmicas pela Rice, MIT, University of Pennsylvania, e pelo InCor/USP, onde trabalhou com pesquisa em diversas áreas, incluindo complexidade computacional, reconstrução tomográfica, métodos analíticos para sistemas estocásticos, dinâmica de sistemas não lineares, e biologia sintética.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.