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Para onde o mundo vai

O nosso cérebro tem um "GPS" que ajuda a gente a se localizar

Mônica Matsumoto

27/09/2018 04h00

O cérebro é o órgão humano mais "sexy" estudado pela ciência hoje em dia, afinal pouco se conhece sobre como o cérebro funciona. Coisas simples, como por exemplo a forma como os neurônios e seus circuitos se organizam, como essas células aprendem, como interpretam imagens, navegam no espaço, formam memórias, entre outros processos cognitivos ainda estão minimamente compreendidos.

Uma questão intrigante é como encontramos um caminho e andamos de um ponto a outro no espaço? Nosso cérebro tem um sistema de posicionamento espacial, como um GPS, que nos faz navegar no ambiente. Mesmo sem o apoio da visão, conseguimos nos localizar no espaço. Como isso acontece no nos circuitos neurais? Algumas dessas descobertas foram fruto de décadas de pesquisa. Os pesquisadores John O'Keefe, Edvard Moser e May-Britt Moser ganharam em 2014 o prêmio Nobel pela descoberta das células que constituem o sistema de posicionamento no cérebro.

O'Keefe e colegas investigaram em uma série de estudos uma região chamada hipocampo. As análises foram feitas em modelo animal, com ratos, que tem exímia capacidade de andar em labirintos. Os ratos se movimentavam livremente dentro de um espaço fechado, e as ativações elétricas dos neurônios foram gravadas. Nesses estudos era possível observar individualmente a atividade de cada célula, e descobriu-se as células de lugar ("place cells") que eram ativadas quando o animal estava fisicamente em um local. Não tinha relação com a musculatura utilizada ou comportamento do animal. Além disso, a frequência de disparo também estava relacionada à velocidade de deslocamento, como uma atualização da posição.

Posteriormente, o casal Moser e colegas descobriram as células da grade ("grid cells"), numa região adjacente ao hipocampo (no córtex entorrinal medial). A pesquisa encontrou uma correlação entre a ativação elétrica dessas células e a localização espacial, formando um mapa. Nesse mapa, células da grade adjacentes representam espaços contíguos. Um achado muito bonito deste estudo foi que a estrutura de conexão de neurônios adjacentes tem forma hexagonal, como se o espaço fosse mapeado no formato das casas de uma colméia.

Figura 1, fonte: Nobel.org. Células de grade, gravada no laboratório Moser. Os pontos azuis são os disparos de uma célula única e a relação espacial em preto. Os  campos de ativação formam um padrão hexagonal de grade, que representa o ambiente físico.

Estudos recentes estão indo ainda mais a fundo no entendimento dessas células, como no experimento publicado recentemente (Set 2018) pelo laboratório dos Mosers. Com o auxílio da optogenética, foi possível entender o funcionamento de alguns neurônios específicos. As células de grade são de dois tipos: as piramidais e os astrócitos. Com essa técnica de optogenética, é possível controlar a célula, se ela dispara ou não, induzida por luz. Assim, é possível fazer experimentos em tempo real com esses neurônios ativados ou não e conhecer mais sobre o papel de cada uma.

Figura 2, fonte: Rowland, D. eLife 2018. Esquema do experimento com optogenética para isolar o estudo dos dois tipos de células de grade.

Outra avenida de pesquisa, percorrida no laboratório de O'Keefe e exemplificada por essa publicação  de Março de 2018, busca entender a importância relativa do mapa com suas bordas ou referências.  No modelo animal, observou-se que se a forma do contorno do espaço interfere no padrão de ativação das células. A ativação é diferente quando o espaço é quadrado, redondo, simétrico ou assimétrico, por exemplo. Parece até um problema de matemática, em que os contornos afetam o equacionamento do mapa.

A translação destes conhecimentos para as células do cérebro humano é um pouco mais complexa. Sabe-se que o hipocampo humano está envolvido na construção da navegação espacial, e Eleanor Maguire mostrou que os motoristas de táxi londrinos tinham um hipocampo muito mais desenvolvido que outras pessoas, inclusive motoristas de caminhos fechados como motoristas de ônibus. Os motoristas de táxi tem essa capacidade de conectar pontos quaisquer em seu mapa mental da cidade, de navegar do ponto A ao ponto B, e essa capacidade explicaria essa estrutura mais desenvolvida. O que se conhece também é que o hipocampo tem funções de linguagem e narrativa, e não se entende ainda a conexão do processamento de espaço e linguagem na mesma organização neural.

Esses estudos interessantíssimos têm demonstrado que, assim como sistemas de GPS e satélites, neurônios formam associações entre a organização própria e o espaço físico, formando verdadeiros mapas mentais. Mesmo sabendo que o cérebro humano é mais complexo que o modelo animal, somos todos partes da mesma evolução, e esse funcionamento das células de lugar e das células grade deve encontrar um correspondente humano. Ainda não podemos fazer o download de um app neuronal que navegue pela cidade, ou que seja capaz de gravar mapas desconhecidos mas talvez um dia possamos fazer um download de memória mental que nos permita navegar em ambientes desconhecidos intuitivamente.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.