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Para onde o mundo vai

Como a inteligência artificial busca provas em grandes investigações

Daniel Schultz

05/07/2018 04h00

Por Shridhar Jayanthi

Serviços de direito, que têm um custo bastante elevado para clientes, incluem um número razoável de tarefas quase-rotineiras. Muitas destas tarefas são executadas por trabalhadores qualificados – advogados e assistentes legais – contribuindo para o alto preço dos serviços legais. Não é de se admirar, portanto, que muitos empreendedores tenham buscado na tecnologia formas de reduzir custos operacionais em advocacia.

Um primeiro choque veio com as ferramentas de telecomunicações. Sistemas de videoconferência, teleconferência e email permitiram, ao longo das décadas de 90 e 2000, a redução de muitas ineficiências relacionadas a produção e entrega de cópias físicas de texto e ao deslocamento de advogados e clientes para provisão de serviços. Tecnologias de busca aplicadas a bancos de dados legais reduziram o custo e o tempo de processos como pesquisas em códigos de leis e no histórico de decisões anteriores.

Um ensaio interessante de Richard Marcus na Northwestern University Law Review discute alguns impactos dessas tecnologias no dia-a-dia dos escritórios de advocacia. Mais recentemente, a maturação de tecnologias que permitem assinaturas e certificação digitais viabilizaram comunicação eletrônica entre advogados e cortes, sem medo de falsas representações. Blockchains parecem ser o próximo passo ao permitir a certificação para contratos de parte-a-parte sem intermediários, como mostra esse relatório da empresa de consultoria Deloitte sobre o uso de blockchains para eliminar a dependência de cartórios sobre transações mobiliárias. Isso levaria ao tão aguardado fim dos cartórios!

A maioria dos desenvolvimentos descritos acima focam em aspectos mais burocráticos dos direito como movimentação de documentos e buscas em códigos. Mas uma revolução mais impactante no direito ocorrerá com a automação de tarefas rotineiras que exigem manipulação de textos. Um exemplo: é comum, em um processo, um advogado receber uma notificação pedindo a anexação de um documento aos autos. Este processo, puramente burocrático, exige que uma pessoa leia o pedido, compreenda a mensagem (a falta de um documento), encontre um documento e produza uma mensagem respondendo a notificação e contextualizando o documento. É coisa de 1 ou 2 horas, e não exige muita capacidade analítica do advogado. Não fosse pelo fato de que é necessário interagir com a língua. É por isso, creio, que é na área de processamento automático de linguagem natural que encontraremos espaço para automação com impacto forte no direito.

Processamento de linguagem natural (NLP) é uma área que busca mesclar linguística com inteligência artificial pra produzir sistemas computacionais capazes de se relacionar semanticamente com textos. Este tipo de sistema permitiria a criação de ferramentas capazes de entender documentos, compreender questões legais triviais e gerar petições simples e documentos rotineiros. Exemplos práticos de sistemas que utilizam NLP incluem os assistentes eletrônicos como Siri e Alexa, que entendem perguntas e são capazes de gerenciar uma agenda com comando de voz. Um livro texto que dá uma boa introdução ao assunto é o "Speech and Language Processing", para quem tiver interesse.

No direito, ferramentas de NLP que têm se demonstrado viáveis atuam na área de análise de provas e documentos. Estas ferramentas buscam automatizar o processo de avaliação em larga escala de documentos. Quem já acompanhou litígios de colarinho branco (como por exemplo os processos da Petrobrás na Lava Jato) deve ter se assustado com o volume de planilhas, emails, cartas, extratos bancários, e recibos que foram estudados. E a imensa maioria destes documentos contém apenas informação rotineira, irrelevante para o processo. O caso aqui é de filtragem de informações. Estas ferramentas costumam usar tecnologia de "sumarizadores" (você pode brincar com o resoomer, que trabalha com francês, inglês, alemão, italiano, ou espanhol) para gerar palavras-chave ou marcadores em documentos e aumentar a velocidade de avaliação. Tecnologia baseada em sumarizadores também tem sido utilizada para outros tipos de análises legais como avaliação de contratos e diligência, um serviço oferecido por empresas como a eBrevia ou NexLP.

Soluções mais ambiciosas também estão começando a surgir. Uma startup que tem causado bastante barulho nesse setor é o DoNotPay. O site, no momento gratuito, entrega ao usuário um ciclo completo de serviços legais. A área de atuação ainda é limitada: protesto de multas de estacionamento urbana e demandas de reembolso aéreo. Mas o serviço é completamente autônomo e sem interação de um advogado real. É um robô quem te atende: ele conversa com você, obtém informações sobre como a multa foi dada, extrai informações a partir de fotos da multa, e busca brechas ou falhas legais na multa. Depois da análise da situação o robô gera uma petição de apelação da multa. De acordo com TechCrunch, o DoNotPay economizou um montante de US$9,3 milhões para um total de 375.000 usuários em seu primeiro ano de operação!

A aplicação e extensão desse tipo de tecnologia esbarra em dois entraves no Brasil – um tecnológico e um legal. No plano legal, há questões de ética e de regulamentação que podem atrasar a expansão da automação. O Brasil, com sua tradição processual positivista não é exatamente aberto a experimentações nesse setor. A Hurst Capital, uma firma de investimentos em litígio (um outro pepino ético cuja discussão não cabe aqui) mantém a robô Valentina para fazer triagens de clientes potenciais na seara trabalhista. A OAB/RJ e o instituto dos advogados brasileiros divulgou uma nota censurando a Hurst pois um robô não poderia atuar como advogado. A robô Valentina não é uma advogada. Mas essa discussão mostra como a cultura jurídica pode dificultar o desenvolvimento de ferramentas.

Uma segunda barreira é a da língua e da cultura. A imensa maioria dos sistemas de processamento de linguagens foram desenvolvidas para o inglês. Sistemas capazes de processar português ainda não estão amadurecidos. Além disso, os processos do direito brasileiro são bastante distintos dos processos de outros países, naturalmente. Como resultado, a tropicalização de sistemas de tecnologia legal estrangeiros não será trivial. Mas, como eu ouvi de um amigo, oportunidade é dificuldade de cabeça pra baixo!

 

Sobre o autor: Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (Ann Arbor) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele se dedica a patentes na área de manufatura elétrica, software, e equipamentos médicos. Antes de lidar com patentes, Shridhar teve passagens acadêmicas pela Rice, MIT, University of Pennsylvania, e pelo InCor/USP, onde trabalhou com pesquisa em diversas áreas, incluindo complexidade computacional, reconstrução tomográfica, métodos analíticos para sistemas estocásticos, dinâmica de sistemas não lineares, e biologia sintética.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.