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Para onde o mundo vai

Uma morte por minuto: os desafios da erradicação da malária

Daniel Schultz

07/06/2018 04h00

Por Rafael Polidoro

Em 2005, no primeiro dia como aluno de biologia na UFMG eu fui procurar um laboratório para iniciação científica. Queria desenvolver a vacina contra o HIV. Meu primeiro orientador, Oscar Bruña-Romero, perguntou: mas por que HIV? Ao que respondi que matava muita gente, e não tinha cura. E ele respondeu, se você se preocupa com mortalidade, deveria fazer vacinas contra malária!

A malária é uma doença causada por protozoários do gênero Plasmodium. Não é uma doença restrita a humanos, entretanto algumas espécies deste parasito estão intimamente relacionadas à nossa espécie. O parasito é transmitido por mosquitos do gênero Anopheles e pelo menos metade da população mundial se encontra em área de risco. Apenas no ano de 2015, 212 milhões de pessoas foram infectadas e uma fatalidade decorrente da doença ocorreu a cada um minuto e treze segundos, a maioria de crianças.

Estes números levaram meu autor favorito, Robert Sapolsky, a escrever em seu livro Memórias de um Primata um causo interessante. Fazendo sua pesquisa em babuínos no Quênia, Sapolsky foi visitar a família de um dos funcionários do parque e logo viu um recém-nascido no colo da mãe. Perguntou o nome da criança, mas sob o olhar surpreso de todos os presentes, ouviu que as crianças não recebem nome até passar a primeira temporada de malária (época das chuvas). Tratável, a doença se caracteriza por febre, dor de cabeça, calafrios e vômito em intervalos de tempo coincidentes com o ciclo de vida do parasito no humano. Em crianças há complicações piores, como anemia e malária cerebral. A maioria dos sintomas se encontra na fase do ciclo de vida em que o parasito infecta células vermelhas do sangue (eritrócitos).

Em 2016, um grupo coordenado pelo pesquisador Robert Seder testou a eficiência da vacinação de humanos e primatas e avaliou inúmeros fatores relacionados à proteção contra uma forma controlada da doença. A presença em grande número de um tipo específico de célula do sistema imunológico (as células T γδ, gama-delta) antes da vacinação foi o único fator foi capaz de predizer a eficácia da proteção da vacina em humanos ou primatas não-humanos, embora ainda não se entenda muito bem por que. Após dez anos trabalhando com vacinas em camundongos, eu queria estudar imunologia humana, um modelo mais relevante para a saúde pública. Em janeiro de 2016, um artigo no qual fui colaborador indicava algumas diferenças entre a imunologia dos camundongos e dos humanos com alta relevância em infecções. Demonstramos que uma proteína chamada granulisina, capaz de formar poros em membranas de bactérias, fungos e protozoários, se mostrou incrivelmente protetora contra protozoários em animais.

Fiquei animado com o trabalho do Dr. Seder e comecei a investigar o papel de células que produziam granulisina. Identifiquei que as células T γδ humanas extraídas do sangue de indivíduos saudáveis, não infectados, produzem granulisina e a liberam em contato com eritrócitos infectados com o protozoário Plasmodium falciparum, a espécie mais letal entre as que causam malária em humanos. As células T γδ detectam mudanças em um receptor nas células infectadas e secretam granulisina, que forma poros nas membranas celulares alteradas pelo parasito e permite a passagem de proteínas capazes de eliminá-lo. Esse trabalho está agora sendo concluído pela pesquisadora Caroline Junqueira (Fiocruz-MG) e pode ter implicações interessantes para melhorar o funcionamento de vacinas contra malária testadas sem sucesso anteriormente.

A pesquisa de malária rendeu prêmios Nobel em 1902, 1907, 1927 e 2015 (3,7% de 108 premiações, entre quase 9 mil doenças classificadas no mundo). Entretanto, sua erradicação ainda parece uma realidade distante. Apesar disso, os dados vêm melhorando graças a iniciativas de governos e entidades filantrópicas, vale destacar os esforços da fundação Bill e Melinda Gates. Além do humanismo e empatia, as perdas econômicas de 212 milhões de pessoas sem condições de trabalhar e quase meio milhão de mortes, são mais do que o suficiente para entender a importância de se erradicar e tratar malária. Decisões políticas pesam na vida e morte, além de impactar na resistência a drogas desenvolvida pelo parasito. Assim que os casos diminuem, políticos cortam verbas dos programas de prevenção e os parasitos ressurgem, em geral com mutações genéticas prevenindo a eficácia de drogas que até então funcionavam. As consequências são muito mais caras do que manter os programas.

 

Sobre o autor: Rafael Polidoro faz seu pós-doutorado na Escola de Medicina de Harvard, pesquisando como células T γδ reconhecem e eliminam o parasito da malária. Rafael fez sua graduação, mestrado e doutorado em bioquímica e imunologia na Universidade Federal de Minas Gerais (Brazil), estudando vacinas para toxoplasmose e doença de Chagas. Rafael é cofundador do Clube de Ciências Brasil, uma organização sem fins lucrativos que promove o interesse pela ciência no Ensino Médio.

 

 

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.