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Para onde o mundo vai

Pombas são capazes de detectar câncer (mas ainda estão longe do hospital)

Mônica Matsumoto

17/05/2018 04h00

 

Seria uma opção no futuro ter um laudo de biópsia feito ou por um ser humano, uma pomba ou pelo computador? Um estudo de 2015 aponta evidências que pombas (da espécie Columba livia, a que vemos nas ruas) podem ser treinadas a reconhecer câncer em lâminas de histopatologia e também em imagens de mamografia.

Neste post, quero chamar atenção para dois aspectos. Um é o cuidado necessário para se tirar conclusões de um estudo. Outro são os motivos do uso de métodos automatizados (inclusive pombas) na medicina ainda estar longe de ser realidade devido a razões práticas, legais e éticas, apesar de potencialmente mais baratos e eficientes.

No estudo feito por pesquisadores americanos, Richard M. Levenson e colegas investigaram a capacidade das pombas de identificar diferentes padrões visuais para imagens de patologia. Em estudos anteriores de outros cientistas, já se sabia que as pombas são capazes de discernir letras e até estilo de pintura entre Monet e Picasso. Um estudo, por exemplo, averiguou que as pombas podem memorizar até 1800 imagens. Esse conhecimento acumulado levou os pesquisadores a investigarem se o sistema visual destas pombas seria também capaz de avaliar imagens médicas, que são mais complexas. Para explorar essa dúvida, foram dadas diferentes tarefas a estes animais, com graus diferentes de dificuldade.

Os experimentos do estudo de Levenson foram feitos com grupos de pombas treinadas para reconhecer amostras benignas ou malignas de imagens de biópsias de mama. Essas imagens usam corantes que realçam estruturas celulares e são analisadas em um microscópio para se determinar o padrão e forma das células no tecido. A imagem é mostrada às pombas numa tela de LCD, com a imagem da lâmina ao centro, e dois botões na tela um à direita e outro à esquerda da imagem, azul ou amarelos (veja o esquema experimental na imagem do post). O toque do bico do pássaro no botão indica a sua escolha. Caso a pomba acerte o botão (que corresponde ao tipo maligno ou benigno para o pesquisador), ela recebe uma dose de comida. Se ela erra, não recebe comida. Dessa forma, ela associa o botão com o tipo de imagem que vê. Em média, o acerto das pombas, depois de treinadas, foi cerca de 85%, inclusive se expostas a imagens novas que não fizeram parte do treinamento. O mais interessante é que se forem coletadas as respostas de diversas pombas para uma mesma imagem, coletivamente o percentual de acerto sobe para 99%. Ou seja, em bando a resposta dos pássaros é melhor do que cada voto individual.

 

Esquema experimental com a pomba e imagem de treinamento. Fonte da imagem: Levenson R e outros. PLoS One 10, no. 11 (2015): e0141357.

 

No método científico, busca-se responder a perguntas. Nesse caso, se as capacidades de percepção visual das pombas poderia ser usada para classificação de novas imagens complexas como as de histopatologia e mamografia. Cada escolha como o número e tipo de imagens usadas, sua distribuição, a escolha das pombas, pode trazer vícios (vieses), que os cientistas tentam retirar ao máximo do experimento. Neste estudo, por exemplo, cada tipo de imagem aparece metade das vezes, para haver uma distribuição igual de amostras. Na vida real, o número de casos benignos tende a ser bem maior do que casos malignos. Não se sabe como se comportaria o experimento nestas condições. Os cientistas deste estudo também exploraram condições desfavoráveis na imagem como desbalanço no contraste, imagens monocromáticas e perda de qualidade com a compressão das imagens. Em condições não ideais, as pombas ainda conseguiram classificar as imagens, mas houve uma perda de performance nas imagens de teste. Assim como nos humanos, as pombas tiveram mais dificuldade de analisar imagens de qualidade ruim.

Em um outro experimento deste estudo, a tarefa era ainda mais complexa: analisar imagens com microcalcificações. Em imagens de treinamento as pombas foram bem, porém, quando expostas a imagens novas, não foram capazes de classificá-las. A taxa de acerto foi quase parecida a jogar cara-ou-coroa. Isso é uma evidência que nesta tarefa elas foram capazes apenas de memorizar imagens, mas não de aprender padrões.

Por esses motivos, usar pombas como especialistas em patologia ou radiologia está longe de ser realidade, e é preciso ter cautela em fazer afirmações categóricas como "pombas podem substituir patologistas". Esse tipo de estudo serve apenas para compreender as capacidades do sistema visual das pombas e os cientistas, portanto, tendem a fazer afirmações muito mais contidas, como "Pombas têm um sistema visual capaz de classificar alguns tipos de imagens de biópsia".

Os computadores, entretanto, estão muito mais próximos de realizar essas tarefas de classificação entre diferentes tipos de imagens médicas. Algoritmos de inteligência artificial (IA) podem tornar algumas atividades de laudo mais automáticas, e esse é um tema quente na radiologia. Com o advento de novas técnicas de imagem digital e do Deep Learning, essa automatização está mais próxima de acontecer. A grande vantagem é que irá auxiliar o especialista a tomar decisões. Um sistema automático bem treinado pode aumentar a sensibilidade e especificidade da interpretação da imagem. Dessa forma, o médico pode empenhar-se em casos mais difíceis ou tarefas delicadas como a de radiologia intervencionista. O trabalho do especialista pode, além disso, ficar mais focado na criação de conhecimentos novos, avançando ainda mais a prática médica.

Contudo, ainda existem diversas limitações para a automatização dos pareceres de patologistas e radiologistas. Os médicos passam por um treinamento completamente diferente dos modelos de dados para IA. A interpretação das imagens envolve estudos desde a biologia básica até os mais recentes estudos científicos, acumulando uma experiência extensiva com atenção a detalhes e nuances que ainda não são replicáveis pelo computador. O médico também interpreta as informações do histórico do paciente e suas informações sócio demográficas, a evolução da doença, além do laudo de outros exames. Além disso, a responsabilidade do laudo é do especialista médico, que assina a descrição e conclusão do exame. As implicações legais de responsabilidade desta avaliação não podem ser passadas a algoritmos ou outras formas de classificação, ou pelo menos muito ainda precisa ser discutido antes de termos pombas ou máquinas interpretando nossas imagens médicas.

 

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.