Topo

Para onde o mundo vai

Transplante fecal mostra a importância dos micróbios do corpo humano

Daniel Schultz

10/05/2018 04h00

Estamos acostumados a pensar em micróbios como causadores de doenças, invasores indesejáveis que devemos eliminar do nosso organismo. Os avanços recentes nas técnicas de sequenciamento de DNA têm permitido aos cientistas realizar um "censo" dos micro-organismos que vivem dentro de nós (o microbioma), entendendo melhor como nossos micróbios são, na realidade, uma parte importantíssima de nós mesmos. Comunidades complexas de bactérias habitam a nossa pele, boca, nariz, aparelho digestivo e muitos outros órgãos, desempenhando parte da química da vida que não conseguimos realizar sozinhos. Novos estudos têm desvendado como nosso microbioma interage com o nosso organismo e como alterações no equilíbrio entre as diferentes espécies pode causar danos à nossa saúde. Várias doenças relacionadas a essas alterações estão sendo tratadas com novas técnicas como os famigerados transplantes fecais, onde as fezes de um doador são introduzidas no intestino a fim de restaurar um microbioma saudável.

Nós temos em nosso corpo por volta de três vezes mais células de bactérias do que nossas próprias células. Juntos, todos esses micro-organismos chegam a pesar 2.5kg, o mesmo que o nosso cérebro. Mais importante, nosso microbioma nos oferece mais de 8 milhões de genes, uma quantidade 360 vezes maior que os 23 mil genes presentes em nosso próprio DNA. Essa imensa variedade põe à nossa disposição todo um arsenal de mecanismos capazes de metabolizar os mais diversos substratos e converter o que comemos em nutrientes que podemos utilizar.

Mesmo sem saber direito como, há milhares de anos seres humanos em todo o planeta já utilizam essa capacidade dos micro-organismos de auxiliar a nossa digestão na preparação de alimentos. Pão com queijo e salame e uma cerveja? Todos alimentos fermentados, processados por comunidades de bactérias e fungos. Esses processos são essenciais para que possamos utilizar novas fontes de alimentação, como no caso do leite. Nós, como todos os mamíferos, vivemos do leite quando bebês, mas depois perdemos a capacidade de digerir a lactose, o açúcar do leite (exceto uma minoria da população que possui mutações que mantêm essa capacidade). A lactose ingerida então chega até o nosso intestino, onde pode ser processada por micro-organismos que geram gases e desconforto. No entanto, com a domesticação de animais de grande porte o leite se tornou uma fonte de alimentação conveniente demais para ser desprezada. A solução foi desenvolver diversas técnicas onde comunidades de micro-organismos foram especialmente desenvolvidas para digerir a lactose e produzir alimentos como queijos, iogurte e manteiga, que podem ser consumidos sem problemas.

Hoje em dia, com a possibilidade de sequenciar o DNA extraído do nosso intestino e analisar essa grande quantidade de dados, estamos começando a compreender como a composição da comunidade de micro-organismos ali presente afeta a nossa saúde. Dusko Ehrlich (na França) e Peer Bork (na Alemanha) mostraram que há tipos diferentes de microbiomas, assim como tipos sanguíneos. A composição de nosso microbioma também é afetada por nosso estilo de vida. O microbioma de membros da tribo Ianomami na Amazônia mostrou a maior variedade de organismos encontrada em seres humanos, no entanto essa variedade é perdida em populações urbanas. Jeff Gordon (St. Louis) e Rob Knight (San Diego) mostraram que ratos geneticamente idênticos podem se tornar obesos ou magros se neles forem introduzidos os microbiomas de pessoas com essas características.

Esses estudos iniciaram uma busca por tratamentos de diversos distúrbios através da manipulação do microbioma. Vários de meus companheiros de laboratório hoje trabalham em startups que desenvolvem esses tipos de tratamento, que envolvem o transplante do microbioma de doadores saudáveis (lê-se fezes) para pessoas com microbiomas disfuncionais. As fezes do doador podem ser introduzidas por enemas, colonoscopia ou mesmo ingeridas em pílulas. Esse tipo de tratamento já é o mais indicado para infecções intestinais recorrentes causadas pela bactéria C. difficile, que são geralmente causadas pelo uso de antibióticos, aos quais essa bactéria é altamente resistente. O uso desses antibióticos podem eliminar a maior parte de nosso microbioma, deixando o caminho livre para o C. difficile se aproveitar do excesso de nutrientes e causar a infecção. A restauração do microbioma saudável elimina esse problema em 90% dos casos.

Vários estudos sendo realizados hoje em dia tentam compreender como essas comunidades de micróbios se estabelecem, como se comunicam entre si e como se comunicam com nosso sistema imunológico, tão acostumado a atacar tudo que seja externo ao nosso organismo. Outros estudos apontam numa direção digna de ficção científica: como o nosso microbioma pode influenciar o nosso cérebro, através do nervo vago, do sistema imunológico e de uma miríade de moléculas neuroativas produzidas por bactérias. Esses estudos podem auxiliar o tratamento de diversos transtornos do cérebros que também estão relacionados a distúrbios gastro-intestinais como autismo, esquizofrenia, doença de Parkinson e até depressão. Todos já sabemos como nosso estado emocional pode embrulhar nosso estômago, mas ao que tudo indica esse eixo cérebro-intestino pode ser uma via de duas mãos!

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.