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Para onde o mundo vai

Como as células-tronco podem ajudar no tratamento de transtornos mentais

Mônica Matsumoto

03/05/2018 04h00

por Bruna Paulsen

Provavelmente você também conhece alguém querido diagnosticado com algum transtorno mental, certo? Em todo o mundo, 1 em cada 6 pessoas são diagnosticadas com algum tipo de transtorno mental ao longo de sua vida: esquizofrenia, autismo, transtorno de ansiedade, depressão, transtorno bipolar, transtorno obsessivo compulsivo, transtorno de estresse pós-traumático, transtornos alimentares, transtorno de personalidade, transtorno por uso de substâncias e por aí vai! Isso é muita gente!

Mas, infelizmente, pelo fato desses transtornos se manifestarem de forma muito diversa e também, por ainda não entendermos suas causas genéticas muito bem, não houve muito avanço na busca por novos e mais eficazes medicamentos nos últimos anos. Felizmente, essa realidade está prestes a mudar! E, hoje, eu vou contar um pouquinho sobre os últimos avanços da ciência, que estão permitindo desvendar novas pistas sobre transtornos mentais e que prometem revolucionar a busca por novos medicamentos num futuro não muito distante.

Quando eu entrei na faculdade em 2005, entusiastas da ciência só falavam na clonagem da ovelha Dolly (1996), na derivação de células-tronco embrionárias humanas (1998) e no Projeto Genoma Humano (2003), que tinha acabado de ser concluído. Talvez você se lembre da novela 'O Clone' (2002), com Murilo Benício, ou do filme 'A ilha' (2004), com Ewan McGregor, que falavam de maneira bem polêmica sobre essa temática. Mas, apesar do receio por se tratar de novas e poderosas tecnologias, cientistas pareciam acreditar que elas revolucionariam a ciência e a medicina dos próximos anos… e eu, caloura na Biomedicina da UFRJ, estava pronta para ver isso acontecer de perto!

Logo em 2006, o pesquisador japonês Shinya Yamanaka descreveu uma nova técnica que possibilitava transformar células adultas, encontradas, por exemplo na sua pele, no sangue ou até no xixi, em células-tronco iguais às células-tronco embrionárias! Essas células ficaram conhecidas como células-tronco de pluripotência induzida ou células iPS (do inglês, induced pluripotent stem cells). Era como fazer as células adultas voltarem no tempo e passarem a ser novamente como uma célula do embrião, ou seja, com o potencial de se transformar em qualquer célula do corpo humano: músculo, osso, neurônio, sangue… Dessa forma, a informação genética (DNA) do doador da célula adulta era mantida na célula iPS gerando uma ferramenta poderosíssima para a modelagem de doenças, que rendeu ao pesquisador o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 2012!

Bom, talvez ainda não esteja muito claro o motivo dessa nova tecnologia ser tão poderosa para a ciência e medicina. Por isso, eu vou usar o exemplo da minha pesquisa na época para explicar a relevância das células reprogramadas. Em 2006, eu desenvolvia a minha monografia no laboratório do Dr. Stevens Rehen. Um dos principais objetivos do nosso laboratório era entender como as células do cérebro eram formadas e o que acontecia de diferente durante o desenvolvimento de células do cérebro de pacientes com transtornos mentais. O resultado dessas pesquisas poderia contribuir, no futuro, com a busca por novos medicamentos, coisa que não acontece há alguns anos na indústria farmacêutica focada nesses transtornos.

É aí que entram as células iPS. Com a nova técnica desenvolvida por Yamanaka, era possível transformar células adultas de pacientes com esquizofrenia, autismo, ou qualquer outra doença genética, em células iPS e, depois, transformá-las em neurônios. Tudo isso numa placa de Petri, dentro do laboratório! Dessa forma, tínhamos acesso à neurônios funcionais de pacientes, sem a necessidade de usar nenhuma técnica invasiva para estuda-los! Usando essa estratégia, durante o meu doutorado, mostramos que células de pacientes com esquizofrenia tinham do que células de indivíduos sem o transtorno, e essa característica podia ser revertida ao tratar as células do paciente com um conhecido estabilizador de humor!

Obviamente o nosso laboratório não era o único no mundo utilizando a nova estratégia das células iPS para modelar os mais diversos transtornos mentais. Essa nova técnica foi rapidamente incorporada por vários grupos de pesquisa mundo à fora e se mostrava uma grande promessa, permitindo que os cientistas visualizassem e estudassem de perto o desenvolvimento de células de indivíduos com diversas doenças genéticas.

Para aprimorar ainda mais esse modelo, em 2013, na Áustria, o grupo do pesquisador Jurgen Knoblich desenvolveu uma nova forma de converter essas células-tronco em neurônios, mas dessa vez em 3 dimensões (3D). Antes disso, essa transformação acontecia a partir de células crescendo grudadas em uma placa de Petri (2D). O que o grupo de Knoblich fez, foi gerar pequenos agregados de células e deixar que essas células se transformassem em uma estrutura formada de neurônios e outras células do cérebro, assim como acontece no desenvolvimento.

Como o cérebro é um órgão bem complexo, organizado em camadas e todo interconectado, essa nova forma de converter células-tronco em neurônios, nos possibilitou observar com ainda mais detalhes alterações particulares de uma determinada doença. Esse novo modelo ficou conhecido como organoides cerebrais ou 'mini-cérebros'. Mas, é importante lembrar que apesar do apelido, os organoides não são um cérebro em miniatura. Eles apenas mimetizam algumas estruturas do cérebro, facilitando entender o comportamento celular num contexto mais complexo (3D). E foi usando esse novo modelo, por exemplo, que o pesquisador Sergiu Pasça, na Califórnia (EUA), mostrou que células derivadas de pacientes com uma síndrome associada ao autismo, geravam interneurônios que migravam de uma região do organoide para outra de forma anormal!

Enquanto alguns pesquisadores trabalhavam duro para desenvolver melhores modelos com células-tronco, diversos outros grupos de pesquisa trabalhavam em aprimorar e baratear os custos para sequenciar o genoma humano. Sabe-se que muitos desses transtornos mentais têm um componente genético, mas identificá-lo, nunca foi fácil. Para isso, seria necessário sequenciar o genoma de centenas de pacientes para que fosse possível encontrar algo em comum entre eles, que pudesse ser associado ao risco de desenvolver o transtorno.

Na época do Projeto Genoma Humano, o sequenciamento de um genoma inteiro custava cerca de 3 bilhões de dólares, o que inviabilizava estudos com centenas de pacientes. Atualmente, os custos para se sequenciar o DNA foram reduzidos em mais de um milhão de vezes! Só o Instituto BROAD, em Massachusetts (EUA), que reúne pesquisadores de Harvard e MIT, já sequenciou mais de 100.000 genomas completos, incluindo diversos pacientes com transtornos mentais! Consequentemente, hoje já foram descritas diversas alterações no DNA associadas a diferentes transtornos mentais.

E não para por aí, sabendo das alterações no DNA que estão associadas ao risco de desenvolver esses transtornos, podemos agora induzir alterações específicas ou corrigir mutações em células-tronco usando a técnica de edição genômica CRISPR (leia: Reescrevendo o DNA: nova técnica gera corrida por Prêmio Nobel e patentes), para estudar os efeitos de uma alteração específica em transtornos mentais.

Pois é! Tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo e tudo isso está acontecendo agora! Aqui no Instituto BROAD e em Harvard, onde eu trabalho, investe-se muito em todos esses tipos de pesquisa, mas não somos os únicos interessados nessa área do conhecimento. Cientistas em todo o planeta, incluindo cientistas brasileiros espalhados pelo mundo e também no Brasil, continuam pesquisando e contribuindo para resolver esse gigante quebra-cabeças que é o mundo dos transtornos mentais. Com o aparecimento dessas novas ferramentas, como as células iPS, os organoides cerebrais e com os avanços e barateamento da genética, a indústria farmacêutica está voltando a investir e acreditar na possibilidade de se encontrar novos medicamentos para aliviar os sintomas de pacientes com diversos transtornos mentais.

O grande desafio agora está em convencer o governo, empresas privadas e a própria população de que o rápido avanço das pesquisas depende de investimentos massivos em ciência e tecnologia. O quanto antes isso acontecer, mais rápido poderemos combinar os achados da genética e das células-tronco e convertê-los em novas terapias, que proporcionem não só uma melhor qualidade de vida para pacientes com transtornos mentais, mas também a reinserção de vários desses indivíduos na sociedade, como parte do retorno desse grande investimento.

 

Sobre a autora: Bruna Paulsen é pós-doutoranda na Universidade de Harvard e trabalha com modelagem de doenças do neurodesenvolvimento através de células-tronco. Bruna recebeu seu bacharelado, mestrado e doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em sua pesquisa de doutorado, ela gerou um modelo baseado em células-tronco de pluripotência induzida (iPS) para o estudo e busca de alvos terapêuticos para esquizofrenia. No último ano de seu doutorado, ela passou um ano na Harvard Medical School trabalhando em formas de aumentar a eficiência da técnica de edição genômica, CRISPR/Cas9, que pode ser usada em terapia gênica e/ou para modelar doenças. Atualmente, Bruna é membro afiliada do Broad Institute e trabalha com organoides cerebrais como modelo para estudar doenças do neurodesenvolvimento. Bruna também trabalha em projetos de divulgação científica, como o Clubes de Ciência Brasil, uma organização sem fins lucrativos que visa inspirar futuros cientistas organizando oficinas em STEM para os jovens ao redor do mundo sem nenhum custo.

Sobre os autores

Daniel Schultz é cientista, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA). Estuda a dinâmica dos processos celulares, com foco na evolução de bactérias resistentes a antibióticos. É formado em engenharia pelo ITA, doutor em química pela Universidade da Califórnia San Diego e pós-doutorado em biologia sistêmica em Harvard. Possui trabalhos de alto impacto publicados em várias áreas, da física teórica à biologia experimental, e busca integrar essas várias áreas do conhecimento para desvendar os detalhes de como funciona a vida ao nível microscópico.

Monica Matsumoto é cientista e professora de Engenharia Biomédica no ITA. Curiosa, ela tem interesse em áreas multidisciplinares e procura conectar pesquisadores em diferentes campos do conhecimento. Monica é formada em engenharia pelo ITA e doutora em ciências pela USP, e trabalhou em diferentes instituições como InCor/HCFMUSP, UPenn e EyeNetra.

Shridhar Jayanthi é Agente de Patentes com registro no escritório de patentes norte-americano (USPTO) e tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Michigan (EUA) e diploma de Engenheiro de Computação pelo ITA. Atualmente, ele trabalha com empresas de alta tecnologia para facilitar obtenção de patentes e, nas (poucas) horas vagas, é um estudante de problemas na intersecção entre direito, tecnologia e sociedade. Antes disso, Shridhar teve uma vida acadêmica com passagens pela Rice, MIT, Michigan, Pennsylvania e no InCor/USP, e trabalhou com pesquisa em áreas diversas da matemática, computação e biologia sintética.

Sobre o blog

Novidades da ciência e tecnologia, trazidas por brasileiros espalhados pelo mundo fazendo pesquisa de ponta. Um espaço para discussões sobre os rumos que as novas descobertas e inovações tecnológicas podem trazer para a sociedade.